4.22.2010

O pagador de promessas-texto retirado da Revista Espaço Acadêmico,nº 73,junho de 2007

Preconceito e intolerância religiosa em O Pagador de Promessas*

para Juliana Ozaí da Silva

Encenada pela primeira vez em 1960, no Teatro Brasileiro de Letras e sob a direção de Flávio Rangel, a peça O Pagador de Promessas[1] expressa a crítica à sociedade urbana e de massas capitalista. Nas palavras de Dias Gomes:
“O HOMEM, no sistema capitalista, é um ser que luta contra uma engrenagem social que promove a sua desintegração, ao mesmo tempo que aparenta e declara agir em defesa de sua liberdade individual. Para adaptar-se a essa engrenagem, o indivíduo concede levianamente, ou abdica por completo de si mesmo. O Pagador de Promessas é a estória de um homem que não quis conceder – e foi destruído. Seu tema central é, assim, o mito da liberdade capitalista. Baseado no princípio da liberdade de escolha, a sociedade burguesa não fornece ao indivíduo os meios necessários ao exercício da dessa liberdade, tornando-a, portanto, ilusória” (GOMES, 1972: 9)[2]
O enfoque principal do autor não é, portanto, a questão religiosa. Não obstante, as personagens, diálogos e contexto sócio-político, também permitem a reflexão nesta perspectiva. O próprio autor admite que “há também a intolerância, o sectarismo, o dogmatismo, que fazem com que vejamos inimigos naqueles que, de fato estão do nosso lado” (id.). Sua preocupação não se restringe à intolerância religiosa, como podemos deduzir a partir do confronto entre o Padre Olavo e Zé-do-Burro, mas abarca a intolerância universal.
Os preconceitos que produzem a intolerância se nutrem de diversos alimentos. A intolerância tem várias faces e se faz presente em qualquer época e território onde pise o ser humano. A história da humanidade é também a história da sua incapacidade de conviver com o outro, com o diferente. Padre Olavo, ressalta Dias Gomes:
“Veste batina, podia vestir farda ou toga. É padre, podia ser dono de um truste. E Zé-do-Burro, crente do interior da Bahia, podia ter nascido em qualquer parte do mundo, muito embora o sincretismo religioso e o atraso social, que provocam o conflito ético, sejam problemas locais, fazem parte de uma realidade brasileira. O Pagador de Promessas não é uma peça anticlerical – espero que isto seja entendido. Zé-do-Burro é trucidado não pela Igreja, mas por toda uma organização social, na qual somente o povo das ruas se confraterniza e a seu lado se coloca, inicialmente por instinto e finalmente pela conscientização produzida pelo impacto emocional de sua morte. A invasão final do templo tem nítido sentido de vitória popular e destruição de uma engrenagem da qual, é verdade, a Igreja, como instituição faz parte” (p. 10).
Porém, da mesma forma que a engrenagem mostra fissuras, representada pela reação de solidariedade ao Zé-do-Burro, os indivíduos que representam a instituição eclesiástica, em especial o Padre Olavo, também poderiam ter atitude mais flexível diante do pagador da promessa. Em outras palavras, os indivíduos agem diante da estrutura (engrenagem) num campo limitado de ação, é verdade, mas como possibilidades. Se o indivíduo faz a história dentro de determinadas condições, estas podem ser transformadas por ele. O contrário é imaginarmos uma espécie de determinismo sob o qual os indivíduos não têm escolha a não ser se submeter.
Candomblé e sincretismo religioso
O candomblé mencionado no contexto da peça O Pagador de Promessas se constituiu na Bahia no século XIX, “a partir das tradições de povos iorubás, ou nagôs, com influências de costumes trazidos por grupos fons, aqui denominados jejes, e residualmente, por grupos africanos minoritários” (PRANDI, 2001: 43 e 1995/96).[3] O Candomblé se constitui inicialmente como uma religião de resistência dos escravos e seus descendentes, numa sociedade de domínio branco e católico. Era através do candomblé, como das demais religiões de origens africanas, que os negros mantinham e renovavam seus vínculos com as tradições culturais da África.[4] “O negro podia contar com um mundo negro, fonte de uma África simbólica, mantido vivo pela vida religiosa dos terreiros, como meio de resistência ao mundo branco, que era o mundo do trabalho, do sofrimento, da escravidão, da miséria” (PRANDI, 1995/96: 79).
Porém, os negros não podiam simplesmente fazer de conta que existia apenas o mundo resguardado pela tradição e religião. Sua existência exigia se fazer presente também no mundo dos brancos, interagindo com estes e sua religião. Esta é a fonte do sincretismo religioso. Como esclarece PRANDI (id.: p.1995/96: 79-80)
“Bastide mostrou como a habilidade do negro, durante o período colonial, de viver em dois diferentes mundos ao mesmo tempo era importante para evitar tensões e resolver conflitos difíceis de suportar sob a condição escrava (Bastide, 1978). Logo, o mesmo negro que reconstruiu a África nos candomblés reconheceu a necessidade de ser, sentir-se e se mostrar brasileiro, como única possibilidade de sobrevivência, e percebeu que para ser brasileiro era absolutamente imperativo ser católico, mesmo que se fosse também de orixá. O sincretismo se funda neste jogo de construção de identidade. O candomblé nasce católico quando o negro precisa ser também brasileiro”.
Este sincretismo está presente em O Pagador de Promessas, não apenas pela identificação entre Iansã e Santa Bárbara, mas também na fala de outros personagens (como “Minha Tia” e o grupo de capoeiristas) e nas manifestações populares de apoio ao Zé. A relação entre as religiões afro-brasileiras e o catolicismo é rica, complexa e determinada historicamente. “A sociedade é a esfinge”, afirma Prandi (Id.: 70). Isso significa que a compreensão da evolução do candomblé e das religiões afro-brasileiras e a forma como se relacionam com o catolicismo pressupõe o contexto histórico sócio-político.[5]
Não é possível aprofundar este tema no limite deste trabalho. Porém, é importante observar que a peça em foco é encenada – e filmada – num contexto sócio-cultural favorável. Nos anos 1960, época da contracultura e da valorização do diferente e exótico, as raízes negras foram revalorizadas pela intelectualidade e classe média urbana, através da música, do cinema e da arte em geral. A cultura vinculada ao candomblé ganha legitimidade. Isto se explica pelo processo de modernização da sociedade, inclusive da imigração nordestina para o sudeste, em especial São Paulo. Prandi (1995/96: 74), analisa este processo e faz referência ao “pagador de promessas”:
“São anos de produção de uma nova forma de cantar em que elementos da cultura do candomblé vão se firmando com legitimidade entre as classes médias consumidoras do que se produz de mais avançado no país. Da Bossa Nova à Tropicália, os baianos estão na ponta da renovação da música popular brasileira. A música “Canto de Ossanha” de Vinícius e Baden, ainda com Elis, mas já pela TV Record, é novo marco.Virão Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Maria Bethânia, entre os mais importantes. Tudo leva à Bahia: o Cinema Novo, as artes cênicas. Com O Pagador de Promessas, filme de Anselmo Duarte adaptado da peça de Dias Gomes, o Brasil se reconhece e se faz reconhecer nas telas do mundo inteiro. Iansã, Santa Bárbara da promessa, está no centro do enredo: o padre contra, o povo a favor”.[6]
O Pagador de Promessas
Recordemos, em resumo, a história da peça. A tempestade derruba uma árvore e Nicolau, o burro, é atingido na cabeça por um dos galhos. Ele adoece e piora. Seu dono, desesperado, faz uma promessa a Iansã (Santa Bárbara). Nicolau se recupera e Zé, carregando uma pesada cruz de madeira por sete léguas, se dirige à cidade para pagar a promessa. Antes de o sol raiar, lá está ele e Rosa, sua esposa, defronte a Igreja de Santa Bárbara. Ao amanhecer, o padre Olavo se dirige até ele, ouve toda a história e lhe nega a permissão para adentrar na igreja com a cruz, impedindo-o de cumprir a promessa plenamente.
No diálogo entre o Padre Olavo e Zé-do-burro fica explícito a intolerância do representante da Igreja Católica em relação às crendices populares e à religião de origem africana. Ao narrar os acontecimentos que motivaram a promessa, a certa altura Zé se refere às rezas do Prêto Zeferino. O padre questiona e ele, num tom de desculpas, tenta se explicar:
ZÉ – Seu vigário me desculpe, mas eu tentei de tudo. Prêto Zeferino é rezador afamado na minha zona: sarna de cachorro, bicheira de animal, peste de gado, tudo isso êle cura com duas rezas e três rabiscos no chão. Todo o mundo diz. E eu mesmo, uma vez estava com uma dor de cabeça danada, que não havia meio de passar. Chamei Prêto Zeferino, êle disse que eu estava com o Sol dentro da cabeça. Botou uma toalha molhada na minha testa, e derramou uma garrafa dágua, rezou uma oração, o sol saiu e eu fiquei bom. (p. 43)
O Padre repreende-o:
PADRE – Você fez mal, meu filho. Essas rezas são orações do demo.[7]
Zé – Do demo, não senhor.
PADRE – Do demo, sim. Você não soube distinguir o bem do mal. Todo homem é assim. Vive atrás do milagre em vez de viver atrás de Deus. E não sabe se caminha para o céu ou para o inferno.
ZÉ – Para o inferno? Como pode ser, Padre, se a oração fala de Deus? (Recita.) “Deus fêz o Sol, Deus fêz a luz, Deus fêz tôda a claridade do Universo grandioso. Com Sua Graça eu te benzo, te curo. Vai-te Sol, da cabeça desta criatura para as ondas do Mar Sagrado, com os santos podêres do Padre, do Filho e do Espírito Santo.” Depois rezou um Padre Nosso e a dor de cabeça sumiu no mesmo instante.
SACRISTÃO – Incrível!
PADRE – Meu filho, êsse homem era um feiticeiro.
ZÉ – Como feiticeiro, se a reza é pra curar?
PADRE – Não é para curar, é para tentar. E você caiu na tentação.
ZÉ – Bem, eu só sei que fiquei bom. (pp. 43-44)
O Padre Olavo fala com a autoridade que a Igreja lhe confere. É enquanto tal que demoniza a crença popular. Zé-do-burro, um homem simples, um homem do campo, expressa em sua simplicidade a perplexidade diante das verdades que o padre pronuncia. Mas seus argumentos, embora simples, são comprovados pelos fatos da vida. Ao padre só resta a demonização e a afirmação de que o homem caiu em tentação.
Não obstante, Zé-do-burro parece não se abalar com o discurso condenatório da autoridade eclesial. Continuando o relato, conta que as rezas não surtiram efeito para o burro Nicolau.[8] Então, a comadre Miúda sugeriu que ele fosse ao “candomblé de Maria de Iansã”. O padre, que até então procurava conter a sua indignação, exclama: “Candomblé?!” Zé responde:
ZÉ – Sim, é um candomblé que tem duas léguas adiante da minha roça. (Com a consciência de quem cometeu uma falha, mas não muito grave.) Eu sei que seu Vigário vai ralhar comigo. Eu também nunca fui muito de freqüentar o terreiro de candomblé. Mas o pobre Nicolau estava morrendo. Não custava tentar. Se não fizessem bem, mal não fazia. E eu fui. Contei pra Mãe-de-Santo o meu caso. Ela disse que era mesmo com Iansã, dona dos raios e das trovoadas.[9] Iansã tinha ferido Nicolau, pra ela eu devia fazer uma obrigação, quer dizer: uma promessa. Mas tinha que ser uma promessa bem grande, porque Iansã, que tinha ferido Nicolau com um raio, não ia voltar atrás por qualquer bobagem. E eu me lembrei então que Iansã é Santa Bárbara e prometi que se Nicolau ficasse bom eu carregava uma cruz de madeira de minha roça até a Igreja dela, no dia de sua festa, uma cruz tão pesada como a de Cristo.
PADRE – (Como se anotasse as palavras.) Tão pesada como a de Cristo. O senhor prometeu isso a...
ZÉ – A Santa Bárbara.
PADRE – A Iansã!
ZÉ – É a mesma coisa...
PADRE – (Grita.) Não é mesma coisa! (Controla-se.)[10] Mas continue... (pp. 44-45)
Zé-do-burro também prometeu, e cumpriu, dividir seu sítio com os lavradores mais pobres. Isto será utilizado pelo esperto repórter e será um ingrediente a mais no emaranhado de incompreensões de que será vítima. Porém, o seu maior desafio é convencer o padre a deixá-lo entrar na igreja com a cruz e, assim, pagar a promessa. Afinal, a graça foi alcançada e o burro Nicolau foi curado. Para o Zé, foi um milagre. “Só eu e ele [o burro] sabíamos do milagre. (Como que retificando.) Eu, êle e Santa Bárbara”, frisa Zé. (p.46)
Em sua simplicidade Zé-do-burro não atenta que seus argumentos irritam ainda mais o vigário. Em sua maneira de conceber a religiosidade, não há qualquer contradição em acreditar em Deus, Santa Bárbara e buscar o socorro da divindade do candomblé. Isto é inconcebível para o vigário:
PADRE – (Procurando, inicialmente, controlar-se.) Em primeiro lugar, mesmo admitindo a intervenção de Santa Bárbara, não se trataria de um milagre, mas apenas de uma graça. O burro podia ter-se curado sem intervenção divina.
ZÉ – Como, Padre, se êle sarou de um dia pro outro...
PADRE – (Como se não o ouvisse). E além disso, Santa Bárbara se tivesse de lhe conceder uma graça, não iria fazê-lo num terreiro de candomblé!
ZÉ – É que na capela do meu povoado não tem uma imagem de Santa Bárbara. Mas no candomblé tem uma imagem de Iansã, que é Santa Bárbara...
PADRE – (Explodindo.) Não é Santa Bárbara! Santa Bárbara é uma santa católica. O senhor foi a um ritual fetichista[11]. Invocou uma falsa divindade e foi a ela que prometeu êsse sacrifício!
ZÉ – Não, Padre, foi a Santa Bárbara. Foi até a igreja de Santa Bárbara que prometi vir com a minha cruz. E é diante do altar que vou cair de joelhos daqui a pouco, pra agradecer o que ela fêz por mim! (p. 46)
Zé-do-burro ainda acredita que o padre, apesar de ralhar e condenar a sua atitude, permitirá que cumpra a promessa. Mas a resposta do vigário será clara, dura e definitiva:
ZÉ – (Em desespêro). Mas Padre, eu prometi levar a cruz até o altar-mor! Preciso cumprir a minha promessa!
PADRE – Fizesse-a então numa igreja. Ou em qualquer parte, menos num antro de feitiçaria.
ZÉ – Eu já expliquei...
PADRE – Não se pode servir a dois senhores, a Deus e ao Diabo!
ZÉ – Padre...
PADRE – Um ritual pagão, que começou num terreiro de candomblé, não pode terminar na nave de uma igreja!
ZÉ – Mas Padre, a igreja...
PADRE – A igreja é a casa de Deus. Candomblé é o culto do Diabo!
ZÉ – Padre, eu não andei sete léguas para voltar daqui. O senhor não pode impedir a minha entrada. A igreja não é sua, é de Deus.
PADRE – Vai desrespeitar a minha autoridade?
ZÉ – Padre, entre o senhor e Santa Bárbara, eu fico com Santa Bárbara. (pp. 48-49).
O padre se retira e ordena ao sacristão que mantenha a porta principal da igreja fechada. Os fiéis devem usar a porta da sacristia, pela qual não é possível entrar com a cruz trazida por Zé-do-burro. Este fica no meio da praça, tenso, perplexo e revoltado.
O discurso do padre se fundamenta numa concepção de bem e mal que não corresponde à tradição do candomblé. O dualismo bem/mal é estranho à divindade africana.[12] O candomblé não faz distinção entre o bem e o mal, como o faz a tradição judaico-cristã.[13] O candomblé opera num contexto ético diferenciado. Como esclarece Prandi (1995/96: 78):
"A diferença entre o bem e o mal depende basicamente da relação entre o seguidor e seu deus pessoal, o orixá. Não há um sistema de moralidade referido ao bem-estar da coletividade humana, pautando-se o que é certo ou errado na relação entre cada indivíduo e seu orixá particular. A base moral está inscrita no cotidiano pelo catolicismo ou pelos valores não religiosos da sociedade." [14]
Na medida em que a religião afro é submetida à ótica judaico-cristã torna-se difícil compreender os seus ritos, simbolismos e divindades. A simplificação dual mal/bem na visão, por exemplo, do Padre Olavo, induz à identificação da sua religião como a “do bem” e a outra é identificada ao maligno. A demonização do outro, é claro, também rende dividendos importantes no mercado dos bens simbólicos religiosos. E, para o sectário e intolerante, é fator de reafirmação da convicção religiosa.
Essa demonização não se restringe ao discurso do Padre Olavo, mas também se manifesta entre os fiéis. Na peça, podemos observar este fator através da personagem Beata. É ilustrativo o diálogo que ela mantém com Minha Tia, personagem devota de Iansã:
MINHA TIA – (Oferece.) Caruru, Iaiá?
BEATA – (Pára junto a ela.) Quê?
MINHA TIA - Caruru de Iansã...
BEATA – (Como se ouvisse o nome do Diabo.) Iansã?! E que é que eu tenho com dona Iansã? Sou católica apostólica romana, não acredito em bruxarias!
MINHA TIA – Adiscurpe, Iaiá, mas Iansã e Santa Bárbara não é a mesma coisa?
BEATA – Não é não senhora! Santa Bárbara é uma santa. E Iansã é... coisa do candoblé, que Deus me perdôe! (Benze-se repetidas vêzes e sai.) (GOMES, 1972: 108-109).
Padre Olavo permanece intransigente, Zé também. A inflexibilidade do primeiro se vincula à concepção sobre a proeminência da religião católica e a demonização da religião afro-brasileira. Ele está convicto de que defende os valores cristãos, a igreja católica e a divindade que acredita. A convicção em si não é boa ou má, mas pode causar efeitos traumatizantes em relação ao “outro”, isto é, àquele que não partilha de tal convicção com a mesma intensidade.
Zé também acredita em Deus, se declara católico e respeita a igreja. Mas não pode recuar, pois seria descumprir a promessa – a qual, aliás, é para Santa Bárbara; ele se mostra mais tolerante em relação ao candomblé, na medida em que reconhece a identificação entre esta e Iansã. Zé não pode aceitar o discurso demonizador do padre e nem compreender a relutância deste em negar seu direito de pagar a promessa feita. E, sobretudo, seus valores morais, próprios do homem do campo naquele contexto sócio-histórico, não permitem-no aceitar outra alternativa que o impeça de cumprir a palavra dada à santa. São dois mundos completamente diferentes que não podem confluir para uma solução intermediária. Nesta perspectiva, e considerando-se a sinceridade da convicção religiosa de ambos, o padre e o pagador de promessas, é quase impossível sair do impasse. Diante da fé absoluta não há saída possível e, no limite, todos têm razão.
Diante do impasse, torna-se necessário a interferência da autoridade superior. Entra em cena o Monsenhor. Sua intervenção pretende demonstrar o quanto a igreja é tolerante. Diante do público que acompanha a contenda entre o padre e o pagador de promessas, ele afirma que foi designado pelo superior hierárquico para cuidar do caso e “dar uma prova de tolerância da igreja para com aquêles que se desviam dos cânones sagrados...” (86). A tolerância é delimitada por aquilo que o Monsenhor acredita ser o cânone, a verdade da igreja. O diálogo a seguir explicita seus limites:
ZÉ – (Interrompe). Padre, eu sou católico. Não entendo muita coisa do que dizem, mas queria que o senhor entendesse que eu sou católico. Pode ser que eu tenha errado, mas sou católico.
MONSENHOR – Pois bem. Vamos lhe dar uma oportunidade. Se é católico, renegue todos os atos que praticou por inspiração do Diabo e volte ao seio da Santa Madre Igreja.
ZÉ – (Sem entender). Como, Padre?
MONSENHOR – Abjure a promessa que fêz, reconheça que foi feita ao Demônio, atire fora essa cruz e venha, sózinho, pedir perdão a Deus.
ZÉ – (Cai num terrível conflito de consciência). O senhor acha mesmo que eu devia fazer isso?!
MONSENHOR – É a sua única maneira de salvar-se. A igreja católica concede a nós, sacerdotes, o direito de trocar uma promessa por outra.
ROSA – (Incitando-o a ceder). Zé... talvez fôsse melhor...
ZÉ – (Angustiado). Mas Rosa... se eu faço isso, estou faltando à minha promessa. Seja Iansã, seja Santa Bárbara, estou faltando...
MONSENHOR – Com a autoridade de que estou investido, eu liberto dessa promessa, já disse. Venha fazer outra.
PADRE – Monsenhor está dando uma prova de tolerância cristã. Resta você escolher entre a tolerância da igreja e a sua própria intransigência.
ZÉ – (Pausa). O senhor me liberta... mas não foi ao senhor que fiz a promessa, foi a Santa Bárbara. E quem me garante que como castigo, quando eu voltar pra minha roça não vou encontrar meu burro morto. (86-87)
O Monsenhor, apesar de parecer tolerante, reproduz o discurso do Padre Olavo. Ele procura persuadir o outro de que o único caminho possível é aceitar e se submeter. Zé vê-se diante do dilema de renegar a promessa e, assim, em sua forma de ver a relação com a divindade, colocar a vida do burro amado em risco.
A intermediação do Monsenhor se faz na perspectiva formal e dogmática manifestada pelo padre Olavo. O Monsenhor também parte do princípio de que Zé cometeu uma heresia e a igreja não pode ser condescendente. Sua proposta também se mostra inviável, pois se choca com a concepção religiosa e de mundo do Zé-do-burro. A inflexibilidade de Zé-do-burro, na análise de Anatol Rosenfeld, “decorre da defesa das convicções profundas, ligadas aos padrões arcaicos do sertão”. Segundo Rosenfeld:
“A religiosidade arcaica e o ingênuo sincretismo de Zé, para quem Iansã e Santa Bárbara, o terreiro e a Igreja, tendem a confundir-se, se chocam inevitavelmente com o formalismo dogmático do padre que, ademais, não pode admitir a promoção do burro a ente digno de promessas” (Id., p. XIV).
Rosenfeld mostra-se transigente em relação à Igreja, a qual teria atenuado a sua postura a partir da intervenção do Monsenhor. Parece-nos que a tolerância deste apenas confirma a intolerância já explicitada pelo Padre Olavo. Se para o analista “ambos têm razão; mas ambos pecam pelo excesso”, ele concorda que Zé-do-burro
“não pode renunciar sem renunciar à sua dignidade e, portanto, à sua própria substância humana que se afirma no cumprimento do imperativo, para êle absoluto, contra as resistências dos outros e mesmo contra as resistências do impulso pessoal de auto-conservação, que deveria impor-lhe o resguardo não só da própria vida, mas sobretudo da honra de marido ibero-americano, em face do desencaminhamento da mulher pela cidade” (Id.).
Zé-do-burro termina por angariar a simpatia. Ele representa os valores morais íntegros, ainda que ingênuos, é o Davi contra Golias, ou seja, um indivíduo que, em sua simplicidade e sem outros recursos senão o próprio argumento e a sua determinação em pagar a promessa, enfrenta uma poderosa organização religiosa, “munida de todos os argumentos e de tôda a lucidez racional”. Rosenfeld demonstra, então, que a atitude da igreja se revelou aquém do necessário e do que se poderia esperar:
“Mesmo buscando a conciliação, mesmo provida pelo autor de razões convincentes, ela não parece fazer jus às expectativas de sabedoria, caridade e tolerância em face do indivíduo simples, puro e frágil, no seu desespêro solitário e na sua fé ingênua. As próprias concessões acabam confirmando a intolerância que, na palavra de Sábato Magaldi, se erige na peça “em símbolo da tirania de qualquer sistema organizado contra o indivíduo desprotegido e só”[15] (p. XV).
Eis a esfinge decifrada. O contexto histórico e social, isto é, o processo de modernização e as transformações pelas quais passava a sociedade na época corroboram para o sucesso da peça e do filme.
Considerações conclusivas...
Se considerarmos a sua sociedade enquanto uma realidade contraditória e em movimento, é possível rompermos com o determinismo de cunho político e economicista. Se a sociedade modela o indivíduo e determina os limites da sua ação, este, por ser agente histórico e ativo, também pode influir sobre os rumos da sociedade. Assim, a intolerância e o preconceito não são fixos e naturais, mas algo que interage com os diferentes contextos sociais. Diferentes épocas podem dificultar ou favorecer sua manifestação. E, mesmo em tempos sombrios, sempre há indivíduos cujas posturas contribuem para o questionamento e superação da intolerância, ainda que sejam minoritários e talvez não se façam ouvir.
A peça de Dias Gomes é uma contribuição fundamental para que possamos pensar as relações entre as diversas religiões e a necessidade de desenvolvermos meios e comportamentos que favoreçam a tolerância religiosa. Pois, mesmo hoje os novos cruzados semeiam os ventos da intolerância. Os tempos são outros, mas o acirramento da competição no mercado de salvação das almas termina por reproduzir as pequenas e grandes inquisições que opõem o bem ao mal. A demonização da religião considerada como concorrente ainda é um recurso muito utilizado.
Na sociedade em tempos de globalização parece acirrar-se a intolerância religiosa. No tempo presente, apesar de toda a sua evolução social e tecnológica, persistem o preconceito e a intolerância expressados na obra dos anos 1960. São renitentes e revitalizados não apenas por setores da Igreja Católica, mas também por outros grupos religiosos vinculados ao neopentecostalismo. Como ressalta Prandi:
“O neopentecostalismo leva ao pé da letra a idéia de que o diabo está entre nós, incitando seus seguidores a divisá-lo nos transes rituais dos terreiros de candomblé e umbanda. Pastores da Igreja Universal do Reino de Deus, em cerimônias fartamente vinculadas pela televisão, submetem desertores da umbanda e do candomblé, em estado de transe, a rituais de exorcismo, que têm por fim humilhar e escorraçar as entidades espirituais afro-brasileiras incorporadas, que eles consideram manifestações do demônio” (PRANDI, 2004: 229).
Esses e outros contendores fazem o papel que a polícia cumpriu em relação aos cultos afros e “fazem da perseguição às crenças afro-brasileiras um ato de fé, o que se pode testemunhar tanto no recinto fechado dos templos como no ilimitado e público espaço da televisão e do rádio” (id.). Antes, o braço do Estado fazia o papel de guardião das “boas” religiões, em especial o catolicismo. Agora são, predominantemente, os novos cruzados, através de poderosos meios de comunicação, que cumprem este papel. Expressa uma intolerância ainda mais intensa, pois nasce e se alimenta na própria sociedade e se pretende cumprir a função purificadora do bem contra o mal. Com efeito, a demonização do outro é um recurso importante não apenas para ganhar adeptos, mas também para purgar culpas. Se a arte expressa a realidade, ela permanece atual.
* Agradeço à Profª Drª Cleyde Rodrigues Amorim (DCS/UEM) pela leitura, revisão e sugestões.
[1] Dirigida por Anselmo Duarte, a versão cinematográfica da peça conquistou a Palma de Ouro do Festival de Cannes de 1962, e vários prêmios nacionais e internacionais.
[2] O texto de O Pagador de Promessas que utilizamos é parte de: GOMES, Dias. Teatro de Dias Gomes. RJ: Civilização Brasileira, 1972, pp. 01-117.
[3] “O candomblé da Bahia, sem dúvida o de mais esplendor de todo o Brasil, que ainda agora serve de espelho a todos os outros cultos, tem uma designação com que não concordam seus adeptos, embora não tenham uma palavra melhor para substituí-la. Uma das danças outrora correntes entre os escravos, nas fazendas de café, era o candomblé. Este era o nome dado a certo tipo de atabaques”, afirma CARNEIRO (1964: 127).
[4] “Eram religiões de preservação do patrimônio étnico dos descendentes dos antigos”, escreve PRANDI (2004: 223). Isso se transformou com o passar do tempo, com estas religiões adquirindo um caráter universal. Segundo Prandi, elas desprenderam-se “das amarras étnicas, raciais, geográficas e de classes sociais. Não tardou e forma lançadas no mercado religioso, o que significa competir com outras religiões na disputa por devotos, espaço e legitimidade” (id.).
[5] “Em resumo”, escreve Prandi, “ ao longo do processo de mudanças mais geral que orientou a constituição das religiões dos deuses africanos no Brasil, o culto aos orixás primeiro misturou-se ao culto dos santos católicos para ser brasileiro, forjando-se o sincretismo; depois apagou elementos negros para ser universal e se inserir na sociedade geral, gestando-se a umbanda; finalmente, retomou suas origens negras para transformar também o candomblé em religião para todos, iniciando um processo de africanização e de dessincretização para alcançar sua autonomia em relação ao catolicismo. Nos tempos atuais, as mudanças pelas quais passam essas religiões são devidas, entre outros motivos, à necessidade da religião se expandir para enfrentar de modo competitivo as demais religiões. A maior parte dos seguidores das religiões afro-brasileiras nasceu católica e adotou a religião que professa hoje em idade adulta. Não é diferente para evangélicos e membros de outros credos” (PRANDI, 2004: 224).
[6] Essa transformação também é interna, isto é, no âmbito do da cultura negra e sua relação com a sociedade de consumo em geral. A identidade negra também passa por mutações. (Ver SANSONE, 2000).
[7] As citações mantêm a ortografia original e os grifos são nossos.
[8] È importante observar os laços de amizade entre Zé e o burro, a tal ponto que dão-lhe o apelido de “Zé-do-burro”. “Nicolau não é um burro como os outros. É um burro com alma de gente”, diz Zé (p.44). O padre fica indignado com esta fala.
[9] Cultuada no Candomblé e na Umbanda, Iansã é um Orixá feminino. Na África ela é Oyá, deusa do Níger. Oyá, Oxún e Obá, que também dão nomes a rios da nação nagô, são esposas de Xangô. Iansã /Oyá é a deusa dos ventos e da tempestade, foi uma princesa real na cidade de Irá, na Nigéria em 1450 a.C. No sincretismo religioso, Iansã é associada a Santa Bárbara, a qual também é invocada pelos fiéis diante dos perigos da tempestade.
[10] Os parênteses incluídos por Dias Gomes sugerem ao leitor o tom da fala, a reação dos personagens etc. Não tive a oportunidade de assistir a peça, mas sim a versão cinematográfica. Então, os diálogos ganham vida e é impossível permanecer impassível diante do que vemos e ouvimos. Isto sugere que o leitor e/ou espectador dificilmente se manterão neutros.
[11] Observe-se a linguagem do padre.
[12] Hoje, por exemplo, o discurso dos grupos religiosos que combatem o candomblé e a umbanda, por exemplo, afirma a malignidade do orixá Exu. Eles identificam o maligno com a religião afro em sua totalidade. Se isto é usado para fins de disputa do mercado religioso, também é uma demonstração de ignorância, o que favorece a intolerância e preconceito. Já no final dos anos 1950, CARNEIRO (1964, 133), observava que Exu “tem sido equiparado ao diabo cristão por observadores apressados”. Ele “serve de correio entre os homens e as divindades, como elemento indispensável de ligação entre uns e outras. Todos os momento iniciais de qualquer cerimônia, individual ou coletiva, pública ou privada, lhe são dedicados para que possa transmitir às divindades os desejos, bons ou maus, daqueles que a celebram”.

4.21.2010

Estudo de casa de Pensão,retirado de POR TRÁS DAS LETRAS(HélioConsolaro)

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(Aluísio de Azevedo )

ROTEIRO BIOGRÁFICO
Aluísio Azevedo (Aluísio Tancredo Gonçalvez de Azevedo), irmão do teatrólogo Arthur Azevedo, nasceu em S. Luís do Maranhão, em 14 de abril de 1857 e morreu, com 56 incompletos, em 21 de janeiro de 1913, na capital argentina. Era diplomata, por concurso, desde 1895, tendo exercido funções em várias partes do mundo.
O desenho e a caricatura eram a sua grande vocação. Acabou romancista. "Fiz-me romancista, não por pendor, mas por me haver convencido da impossibilidade de seguir a minha vocação que é a pintura. Quando escrevo, pinto mentalmente. Primeiro desenho os meus romances, depois redijo-os." (Aluísio Azevedo – Uma vida de romance – Raimundo de Menezes – Liv. Martins Edit. P. 146). Foi um dos primeiros, entre nós, a procurar viver ou sobreviver de sua profissão de escritor.
"Escrever tem sido até hoje aqui no Rio de Janeiro a minha grilheta, muito pesada e bem pouco lucrativa..." (Apud Prosa de Ficção – Lúcia Miguel Pereira – Liv. José Olympio Edit. – 1957 – 2ª ed. Pág. 143). "Aluísio Azevedo é no Brasil talvez o único escritor que ganha o pão exclusivamente à custa da sua pena, mas note-se que apenas ganha o pão: as letras no Brasil ainda não dão para a manteiga..." (Valentim Magalhães – apud Raimundo de Menezes – o.c.. pág. 29).
Por isso, muitas vezes fabricou os seus romances para (sobre)viver. Alguns de seus livros são de "pura inspiração industrial", segundo expressão de José Veríssimo. (História de Literatura Brasileira – Liv. Francisco Alves – Rio – 1916 – pág. 357). Com alguma facilidade se pode notar o desnível que existe entre os seus romances. De sua obra ficcional, bastante numerosa, o tempo, crítico severo, selecionou algumas que ficaram e ficarão na literatura naturalista brasileira. "De tudo isso só ficaram O Cortiço, O Coruja, Filomena Borges e O Livro de uma Sogra, são hoje a bem dizer, ilegíveis. Mas O Cortiço basta para lhe assegurar a posição de primeiro plano da nossa literatura." (Prosa de Ficção – Lúcia Miguel Pereira – Liv. José Olympio Edit. – Rio – 1957 – 2ª ed. Pág. 144).
"Casa de Pensão e O Cortiço, assinalemos desde já, situam-se no ponto mais alto da curva que descreve a evolução da obra de Aluísio Azevedo." (Josué Montello – in A Literatura no Brasil – vol II – pág. 61).
"Quer em O Cortiço quer em Casa de Pensão, pôde realizar criações romanescas notáveis pela excelente fixação de alguns tipos, pela movimentação das cenas e pelo jogo das situações dramáticas." (Aspectos de Romance Brasileiro – Eugênio Gomes – Liv. Progresso Edit. – Salvador – s.d. pág. 129).
Há alguma concordância na seleção das duas melhores obras de Aluísio Azevedo, conforme se pode ver pela crítica citada. Talvez o tempo tenha cometido uma injustiça, esquecendo O Coruja, uma estória muito humana de uma personagem tão bonita de alma e tão feia de corpo. Corre no livro uma lírica visão do homem.
Diz Josué Montello que "Alcides Maia foi o único grande crítico a chamar a atenção para a alta importância de O Coruja, não apenas no panorama restrito da bibliografia de Aluísio, mas dentro do panorama geral de nossa literatura, ao afirmar que, na sua estranha personagem central, há uma criatura de arte que roça pelo símbolo e não tem rival no romance brasileiro." (A Literatura no Brasil – vol. II – pág. 62).
Mas não há dúvida para a crítica atual que O Cortiço ficou definitivamente como sua obra-prima: apesar do caráter documental que o livro apresenta, como romance, supera o ocasional e o informativo, pela criação de personagens vivos, pela linguagem expressiva, pela superação das exagerações da escola naturalista.
No melhor da obra literária de Aluísio Azevedo, nota-se a influência, quase sempre benéfica, dentro do campo de criação romanesca, de Zola e do autor de O Crime do padre Amaro, Eça de Queirós. Quando o autor parece escapar dos dois, torna-se um pobre "produtor de folhetins". (Alfredo Bosi – História Concisa da Literatura Brasileira – Cultrix – S. Paulo – 1970 – pág. 209).
Pode-se classificar a obra de ficção do autor no seguinte quadro didático:
Românticos:
Uma Lágrima de Mulher (1879)
Condessa de Vésper (1882) (com o título de Memórias de um Condenado)
Girândola de Amores (1882) (com o título de Mistério da Tijuca)
Filomena Borges (1884)
A Mortalha de Alzira (1894)
Demônios (1893) (Contos)
Realistas
O Mulato (1881)
Casa de Pensão (1884)
O Coruja (1885)
O Homem (1887)
O Cortiço (1890)
Livro de uma Sogra (1895)
Entrando para a diplomacia em 1895, encerrou definitivamente a sua carreira literária, em completo desencanto. Hoje, o que lhe dá renome, é a sua obra literária...
Enredo de Casa de Pensão
Amâncio (Da Silva Bastos e Vasconcelos), rapaz rico e provinciano, abandona o Maranhão e segue de navio para o Rio de Janeiro (a Corte) a fim de se encaminhar nos estudos e na vida. É um provinciano que sonha com os deslumbramentos da Corte. Chega cheio de ilusões e vazio de propósitos de estudar... A mãe fica chorosa e o pai, indiferente, como sempre fora no trato meio distante com o filho. O rapaz tinha que se tornar um homem.
Amâncio começa morando em casa do sr. Campos, amigo do Pai, e, foçado, se matricula na Escola de Medicina. Ia começar agora uma vida livre para compensar o tempo em que viveu escravizado às imposições do pai e do professor, o implacável Pires.
Por convite de João Coqueiro, co-proprietário de uma casa de pensão, junto com a sua velhusca mulher Mme. Brizard, muda-se para lá. É tratado com as maiores preferências: os donos da pensão queriam aproveitar o máximo de seu dinheiro e ainda arranjar o seu casamento com Amélia, irmã de Coqueiro. Um sujo jogo de baixo interesses, sobretudo de dinheiro. Naquele ambiente, tudo concorreria para fazer explodir a super-sensualidade do maranhense.
"Ele, coitado, havia fatalmente de ser mau, covarde e traiçoeiro: Na ramificação de seu caráter e sensualidade era o galho único desenvolvido e enfolhado, porque de todos só esse podia crescer e medrar sem auxílios exteriores." (pág. 166)
A casa de pensão era um amontoado de gente, em promiscuidade generalizada, apesar da hipócrita moralidade pregada pelo seu dono: havia miséria física e moral, clara e oculta. Com a chegada de Amâncio, a pensão passou a arapuca para prender nos seus laços o jovem, inesperto e rico estudante: pegar o seu dinheiro e casá-lo com a irmã do Coqueiro. Para alcançar o fim, todos os meios eram absolutamente lícitos. Amélia, principalmente quando da doença do rapaz, se desdobrou nos mais íntimos cuidados. Até que se tornou, disfarçadamente, sua amante. Sempre mantendo as aparências do maior respeito exigido dentro da pensão pelo João Coqueiro...
O pai de Amâncio morre no Maranhão. A mãe chama o filho. Ele pretendo voltar, logo que terminarem os seus exames de medicina. Era preciso que o filho voltasse para vê-la e ver os negócios que o pai deixara. Mas o rapaz está preso à casa de pensão e a Amélia: este o ameaça e só permite sua ida ao Maranhão, depois do casamento. Amâncio prepara sua viagem às escondidas. Mas, no dia do embarque, um oficial e justiça acompanhado de policiais o prende para apresentação à delegacia e prestação de depoimentos. Amâncio é acusado de sedutor da moça. João Coqueiro prepara tudo: o caso foi entregue ao famigerado e chicanista Dr. Teles de Moura. Aparecem duas testemunhas contra o rapaz. Começa o enredado processo: uma confusão de mentiras, de fingimentos, de maucaratismo contra o jovem rico e desfrutável para os interesses pecuniários de Mme. Brizard e marido. Há uma ressonância geral na imprensa e, na maioria, os estudantes se colocam ao lado de Amâncio. O senhor Campos prepara-se para ajudar o seu protegido, mas Coqueiro lhe faz chegar às mãos uma carta comprometedora que Amâncio escrevera à sua senhora, D. Hortênsia. E se coloca contra quem não soube respeitar nem a sua casa...
Três meses depois de iniciado o processo, Amâncio é absolvido. O rapaz é levado em triunfo para um almoço, no Hotel Paris.
"Amâncio passava de braço a braço, afagado, beijado, querido, como uma mulher famosa." (317). Todo mundo olhava com curiosidade e admiração o estudante absolvido. E lhe atiravam flores, Ouviam-se vivas ao estudante e à Liberdade. Os músicos alemães tocaram a Marselhesa. Parecia um carnaval carioca.
Em outro plano, Coqueiro, sozinho, vendo e ouvindo tudo. A alma envenenada de raiva. Em casa o destampatório da mulher que o acusava de todo o fracasso. As testemunhas reclamavam o pagamento do seu depoimento. Um inferno dentro e fora dele. Chegaram cartas anônimas com as maiores ofensas. Um homem acuado...
Pegou, na gaveta, o revólver do pai. E pensou em se matar. Carregou a arma. Acertou o cano no ouvido. Não teve coragem. Debaixo da sua janela, gritavam injúrias pela sua covardia e mau caráter... No dia seguinte, de manhã, saiu sinistro. Foi ao Hotel Paris. Bateu no quarto II, onde se encontrava o estudante com a rapariga Jeanete. Esta abriu a porta. Amâncio dormia, depois da festa e da bebedeira, de barriga para cima. Coqueiro atirou a queima-roupa. Amâncio passa a mão no peito, abre os olhos, não vê mais ninguém. Ainda diz uma palavra: "mamãe" ... e morre.
Coqueiro foi agarrado por um policial, ao fugir. A cidade se enche de comentários. Muitos visitam o necrotério para ver o cadáver de Amâncio. Vendem-se retratos do morto. Um funeral grandioso com a presença de políticos, notícias e necrológicos nos jornais, a cidade toda abalada. A tragédia tomou conta de todos.
A opinião pública começa a flutuar, a mudar de posição: afinal, João Coqueiro tinha lavado a honra da irmã...
Quando D. Ângela, envelhecida e enlutada, chega ao Rio de Janeiro, se viu no meio da confusão, procurando o filho. Numa vitrine, ela descobriu o retrato do filho "na mesa do necrotério, com o tronco nu, o corpo em sangue. Uma legenda: "Amâncio de Vasconcelos, assassinado por João Coqueiro, no Hotel Paris..."
O Estilo da Época
A obra de Aluísio de Azevedo que ficou na literatura brasileira é o seu romance naturalista. "Dominava a cena artística brasileira o sistema de idéias estéticas implantado pela poderosa geração de 1870, e que constituíram o complexo estilístico do Realismo-Naturalismo-Parnasianismo." (Afrânio Coutinho – Introdução à Literatura Brasileira – Rio de Janeiro – 1964 – 2ª ed.-pág. 207).
O realismo tende para uma visão biológica do homem; o naturalismo, para uma visão patológica: um homem dominado pelo animalesco, marcado por taras e degenerecências, produto fatal da hereditariedade, uma apenas máquina sujeita às leis físico-químicas. Os greco-latinos acreditavam na fatalidade (Moira) a quem estavam sujeitos os mesmos deuses. A ciência pseudo-ciência do século XIX ensinou ao naturalistas a crença na hereditariedade. O personagem de tragédia que era escravo da fatalidade se torna escravo da hereditariedade para os naturalistas. Uma das confusões mais comuns entre eles era a da ciência com a literatura. Se o realismo nos deu um romance-documental, o naturalismo - verdadeiro laboratório – nos deu um romance-experimental, na mesma linha do Roman expérimental de Zola (1880).
"Entendemos que um romancista deve ser ao mesmo tempo um observador e um experimentador. O observador expõe os fatos tais quais os observou, estabelece o terreno sólido em que se vão mover os personagens e acontecimentos; em seguida surge o experimentador e faz experiências, isto é, faz seus personagens se movimentarem em determinado enredo, de modo a patentear que a sucessão dos fatos é a exigida pelo determinismo das coisas estudadas." (Zola – apud Nelson Werneck Sodré – O Naturalismo no Brasil – Edit. Civilização Brasileira – Rio de Janeiro – 1965 – pág. 33).
Nessa fidelidade a uma pseudo-realidade está o erro fundamental de um naturalista como Aluísio de Azevedo. A pressa com que realizou a sua obra romanesca – apesar do seu inegável talento – o fez fiel demais às formas e fórmulas do naturalismo a tal ponto que o romance mostre nitidamente os andaimes e as outras marcas de sua fabricação. Os personagens se movem dentro do romance como verdadeiros robôs, teleguiados por forças mecânicas, dentro do seu meio, obedientes às forças atávicas, sem nenhuma liberdade de ser e de agir. O naturalista se esqueceu de "que os sinais exteriores são apenas uma parte da realidade, não podendo a literatura, pois, pelo levantamento apenas dos dados colhidos pela observação, dos dados exteriores, reproduzir a realidade; em segundo lugar, não compreendia que a realidade humana, que é o domínio de que a literatura se ocupa, não está nos indivíduos, mas na sociedade; finalmente, que a realidade não está no patológico, no anormal, no excepcional, mas no normal, no comum, no típico." (Nelson Werneck Sodré – ib. pág. 37-38).
Dentro do naturalismo, cabem afirmações tão dogmáticas quanto incompletas e, hoje, erradas, para uma concepção moderna do homem, como estas:
"O romance deve ser um estudo de um curioso caso fisiológico"; "dados um homem forte e uma mulher insatisfeita, procurar neles as besta..."; "fazer em dois corpos vivos o que o cirurgião faz em cadáveres..." (Zola – Apud Nelson Werneck Sodré – ib. pág. 19). Ou: "o vício e a virtude são os produtos químicos como o açúcar e o vitríolo" (Taine); "precisamos acanalhar a arte" (Courbet) (apud id. Ib. pág. 19).
O naturalismo está plenamente representado
em Casa de Pensão:
1) Desde a abertura do romance, Amâncio aparece marcado fatalisticamente pela escola e pela família: uma e outra o encheram de revolta. Por causa de um castigo justo ou injusto, "todo o sentimento de justiça e da honra que Amâncio possuía, transformou-se em ódio sistemático pelos seus semelhantes..." (Casa de Pensão – pág. 25). O leite que o menino mamou na ama negra também está contagiado e irá marcá-lo. O médico dizia: "Esta mulher tem reuma no sangue e o menino pode vir a sofrer para o futuro." (ib. pág. 28). Amâncio é uma cobaia, um campo de experimentação nas mãos do romancista. Nele o fisiológico é muito mais forte do que o psicológico. É o determinismo que vai acompanhar toda a carreira do personagem.
2) O sentido documental e experimental do romance naturalista, renunciando ao sentimentalismo e à evasão, procura construir tudo sobre a realidade. A estória do romance se baseia num caso real, o caso do estudante Capistrano, até nos pormenores. Leiamos um resumo dos acontecimentos.
"O emocionante caso de polícia, logo conhecido e popularizado sob a epígrafe de "Questão Capistrano", envolve dois jovens e estudantes da Escola Politécnica, antes da tragédia, grande e inseparáveis amigos: João Capistrano da Cunha e Antônio Alexandre Pereira.
O tão debatido "Affaire Capistrano", que o povo e os jornais da época consagram, divide o público e nascem então acesas polêmicas. O carioca da época não fala noutra coisa, não discute outro assunto , não se preocupa senão com os dois processos criminais apesar de rotineiros, em que se misturam a honra de uma moça e o homicídio do seu sedutor.
O caso principia trivialmente assim: dona Júlia Clara Pereira é modesta professora de piano, que, naquele ano de 1875, mora com os dois filhos Antônio Alexandre Pereira, estudante de engenharia, e Júlia Pereira, de 20 anos, em pequena casa da Rua Silva Manuel, nº 10. A pobre viúva baiana luta com inauditas dificuldades para prover a pequena família. As aulas de piano é que lhes mantêm as despesas da casa e dos estudos. A habitação apresenta-se em péssimo estado e resolvem alugar outra, no ano seguinte, bem maior e mais cômoda, na Rua do Alcântara, nº 71, e que, além do pavimento térreo, tem o sótão em forma de chalé.
Como a nova moradia possui alguns quartos a mais, deliberam alugá-los, montando assim uma casa de pensão, muito comum naqueles tempos. Dessa maneira podem auferir outros lucros para os gastos sempre crescentes. Os dois primeiros pensionistas são colegas do filho: Mariano de Almeida Torres e João Capistrano da Cunha, rapazes procedentes do Paraná, tidos e haviados como de bom comportamento e acolhidos no seio da família Pereira sob o maior carinho e confiança.
Em pouco, no convívio diário, nasce o namoro entre o estudante Capistrano e a jovem Júlia. O idílio pega fogo... Voraz concupiscência encarrega-se do resto... Uma noite – naquela de 13 para 14 de janeiro de 1876 – acontece o imprevisto: o rapaz não se contém e demanda o quarto da moça, desonrando-a às brutas, violentado-a...
Na manhã seguinte, a jovem, entre lágrimas, conta à mãe o que lhe acontecera. A viúva não tem dúvidas: vai às falas com o moço. Este, como sói acontecer em casos desse jaez, dá um pretexto qualquer, procura adiar o compromisso do enlace para data bem remota, quando, então, reparará o dano causado. Enquanto isso, dias e meses decorrem sem nenhuma atitude do namorado, frio e indiferente ao cumprimento da palavra empenhada.
Quando menos se espera, sai de casa e não volta mais. Some de uma vez. Todos ignoram-lhe o paradeiro. Deixa, apenas, na pensão a roupa, os livros, a mala... A mãe e o tutor da vítima apressam-se em procurar a delegacia de polícia mais próxima para a respectiva queixa. Comparecem acompanhados do advogado dr. Jansen de Castro Júnior, e exigem 50 contos de indenização pelos danos causados!
O inquérito tem o seu seguimento natural. Concluído, é enviado a Juízo. Os jornais se encarregam de divulgá-lo num noticiário pormenorizado e profuso, enchendo colunas e colunas, dias e dias seguidos, a explorar morbidamente a curiosidade pública. A população apaixona-se pelo caso, tornado assim de repente, para conseguir fácil casamento... Outros, mais exaltados, são de opinião contrária, julgam-no digno de pena severíssima.
O indiciado João Capistrano da Cunha, acolitado por três bons advogados, drs. Busch Varela e Duque Estrada Teixeira e conselheiro Saldanha Marinho, comparece à barra do Tribunal, no dia 17 de novembro. Figura como promotor público interino o dr. Ferreira de Oliveira, que produz veemente acusação. A colossal massa popular, que enche o salão, vibra. Contradita-se o defensor do réu, dr. Busch Varela. À réplica do promotor, respondem os outros dois patronos: dr. Duque Estrada Teixeira e conselheiro Saldanha Marinho, que conseguem a absolvição do seu constituinte, após calorosos debates, ovacionando os diversos advogados, e, à saída, prorrompe em palmas ao absolvido, carregado em triunfo pelos colegas. Oferecem-lhe ainda um banquete em regozijo, no Hotel Paris
O desfecho tem viva repercussão na sociedade fluminense. A viúva e o irmão da vítima não se conformam com tão injustiça e iníqua sentença. Desesperado, o jovem Antônio Alexandre Pereira passa três dias pensando no que deve fazer.
Precisa tomar atitude. A idéia fixa aflige-o, mortifica-o: necessita lavar a honra da família tão rudemente ofendida. Resolve fazer justiça com as próprias mãos. Impõe-se uma lição de mestre ao impune autor da desgraça da irmã, que chora, dia e noite, envergonhada e entre a profunda prostração.
O acadêmico adquire uma arma de 25 cápsulas por 22$000 – uma tragédia atrai outra tragédia – e sai à procura do amigo da véspera. Encontra-o em olena na Rua da Quitanda, fronteiro ao nº 128, cerca das 10 da manhã, quando se dirige à casa do seu correspondente, um negociante da Rua de São Pedro. Pelas costas alveja-o com cinco tiros e fere-o gravemente com apenas um no pulmão esquerdo. O rapaz corre para o interior do armazém, fugindo a novo disparo e logo cai sem forças ao chão. Está morto!
O agressor tenta, em vão, escapar, quando é preso em flagrante por Augusto César de Mascarenhas, que passa na ocasião, e entrega-o à Justiça.
O pulmão da vítima achava-se atrofiado, podendo morrer em breve tempo, constataram os médicos na autópsia.
A rapaziada da Politécnica exalta-se e promove uma série de homenagens ao colega morto: veste-se de luto, chora, vai incorporada ao enterro, que se transforma em apoteose pública, carregado a mão, por estudantes e políticos que comparecem concitados pela astúcia partidária de Saldanha Marinho, um dos advogados do morto. O próprio Visconde do Rio Branco, diretor da Escola, suspende as aulas por dois dias.
O processo de homicídio corre os trâmites legais. O acadêmico Antônio Alexandre Pereira senta-se no banco dos réus a 20 de janeiro de 1877. É defendido pelo mesmo advogado que figurara no caso da irmã, o dr. Jansen de Castro Júnior. Os debates atraem mais gente que no episódio anterior do defloramento. Agora a coisa é outra: as antipatias populares, até ontem contra a família Pereira, transforma-se então em simpatias pelo assassino... O mesmo júri, que absolve o primeiro, absolve o segundo! Inocenta-o por unanimidade de votos! Também uma salva de palmas acolhe o veredictum no Tribunal. É o acusado carregado em triunfo pelos mesmos colegas, que ovacionaram o morto da véspera...
Em rápidos traços, eis as duas tragédias que abalam o Rio de Janeiro daqueles tempos: a famosa "Questão Capistrano", que vai, sete anos depois, inspirar o romancista Aluísio Azevedo no enredo do livro a que dará a epígrafe de "Casa de Pensão".
(Raimundo de Menezes – Aluísio de Azevedo – Uma vida de romance – Liv. Martins Editora – S. Paulo – 1958 – pág. 147 a 150).
3) Os personagens, na sua totalidade, são retratados sob o ângulo patológico: são casos anormais.
Amâncio aparece como um super-excitado sexualmente, condicionando proximamente pelo ambiente da casa de pensão e remotamente pelo sangue e pela educação; Mme. Brizard e Coqueiro se apresentam como gananciosos a ponto de fazerem negócio à base da cunhada e irmã; Nini sofre de crises agudas de loucura histérica, estrebuchando e caindo diante de Amâncio; Lúcia e o marido se mostram também tipos esquisitos, ela pelo sexo e ele por estranho alheamento. Amélia também se mete, de cambulhada, nessa enxurrada de sujeiras tentando um bom negócio de sexo e dinheiro... A própria D. Hortênsia, mulher do Campos, manifesta sinais de insatisfação sexual: apesar das negativas iniciais diante das propostas... Essas personagens, quase todas, poderiam mudar-se da Casa de Pensão para outro romance do autor, mais exagerado, ao sentido naturalista: O Homem. E se dariam muito bem no novo ambiente ainda mais patológico. A casa de pensão não se parece com um pequeno e confuso hospital? Os seus moradores são, em geral, verdadeiros doentes;
4) Quebra-se o esquema romântico da vitória do bem sobre o mal, do triunfo do(s) herói(s). Tudo se mistura na vida, trigo e joio, ninguém consegue separá-los, perde-se a consciência do bem e do mal. Afinal, quem é o bom e quem é o mau? Se, até certo momento, a opinião pública esteve ao lado de Amâncio, quem nos garante que, para o final, não estaria já mudando para o apoio a João Coqueiro? Se o assassino for a julgamento, defendido pelo inteligente e chicanista Dr. Teles, certamente será também absolvido...
Além disso, não existem ideais a que aspiram os personagens: eles ficam reduzidos ao terra a terra, aos aspectos, fisiológicos e animalescos, aos grandes egoísmos que fazem os homens sórdidos e vis. Não há, em ninguém, traço algum de grandeza, nem nos personagens principais, nem nos secundários. Essa visão negativista e materialista exclui qualquer consciência moral no julgamento dos atos e personagens. E, dentro do quadro de pensamentos e ações do casal Mme. Brizard e João Coqueiro, o que se faz é praticar o princípio de que os fins justificam os meios. Assim, o homem ficar reduzido a um amontoado de contradições, de secreções, de completo materialismo e mecanicismo. Tudo é esquematizado de acordo com uma obediência cega à lei de causalidade: ficam eliminadas as ações e reações pessoais para dar lugar às reações de massa, sem liberdade. Os personagens não se movem, são movidos e levados, cada um, para o seu desenlance.
5) Uma técnica comum ao escritor naturalista é o abuso dos pormenores descritivo-narrativos de tal modo que a estória caminha devagar, lerda e até monótona. É a necessidade de ajuntar detalhes para se dar ao leitor uma impressão segura de que tudo é pura realidade. Essas minúcias se estendem a episódios, a personagens e a ambientes. Num episódio, por exemplo, há minúcias de tempo, local e personagens. E móveis de uma sala até os objetos mais miúdos.
"Campos entrou no seu escritório e foi sentar-se à secretária. Defronte dele, com uma gravidade oficial, empilhavam-se grandes livros de escrituração mercantil. Ao lado, uma prensa de copiar, um copo de água, sujo de pó, e um pincel chato; mais adiante, sobre um mocho de madeira preta muito alto, via-se o Diário deitado de costas e aberto de par em par..." (pág. 13).
Um retrato:
"Seus olhos, pequenos e de cor duvidosa, conservavam a mesma penetração e a mesma fluidez incisiva de ave de rapina; sua boca, estreita, bem guarnecida e quase sem lábios, tinha o mesmo riso arqueado, mal seguro e frio, de quem escuta e observa. Era de altura regular, compleição ética, rosto comprido, de um moreno embaciado, pouca barba, pescoço magro, nariz agudo, mãos pálidas e secas, voz doce e cabelo muito crespo, de colorido incerto, entre castanho e ruivo. Tinha vinte e sete anos, mas aparentava, quando muito, vinde e dois..." (pág. 55, 56 – É João Coqueiro).
Descrição da casa de pensão:
"A casa tinha dois andares e uma boa chácara no fundo. O salão de visitas era no primeiro. Mobília antiga, um tanto mesclada; ao centro, grande lustre de cristal, coberto de filó amarelo. Três largas janelas de sacada, guarnecidas de cortinas brancas, davam para a rua; do lado oposto, um enorme espelho de moldura dourada e gasta, inclinava-se pomposamente sobre um sofá de molas; em uma das paredes laterais, um detestável retrato a óleo de Mme. Brizard, vinte anos mais moça, olhava sorrindo para um velho piano, que lhe ficava fronteiro; por cima dos consolos, vasos bonitos de louça da Índia, cheios de areia até à boca..." (pág. 96). E a descrição continua pela página seguinte.
Ainda um outro retrato: Amélia em dia de festa:
"E de fato Amélia nesse dia estava encantadora. Vestia fustão branco, sarapintado de pequenas flores cor-de-rosa. O cabelo, denso e castanho, prendia-se-lhe no toutiço por um laço de seda azul, formando um grande molho flutuante, que lhe caía elegantemente sobre as costas. O vestido curto, muito cosido ao corpo, enluvava-lhe as formas, dando-lhe um ar esperto de menina que volta do colégio a passar férias com a família. Era muito bem feita de quadris e de ombros. Espartilhada, como estava naquele momento, a volta enérgica da cintura e a suave protuberância dos seios, produziam nos sentidos de quem a contemplava de perto uma deliciosa impressão artística..." (pág. 97 – E a descrição continua...)
E o tísico do quarto nº 7:
"O homem estava muito aflito, debatendo-se contra os lençóis, no desespero da sua ortopnéia.
A cabeça vergada para trás, o magro pescoço estirado em curava, a barba tesa, piramidal, apontando para o teto; sentiam-se-lhe por detrás da pele empobrecida do rosto os ângulos da caveira; acusavam-lhe os ossos por todo o corpo; os olhos, extremamente vivos e esbugalhados, de uma fixidez inconsciente, pareciam saltar das órbitas, e, pelo esvazamento da boca toda aberta, via-se-lhe a língua dura e seca, de papagaio, e divisavam-se-lhe as duas filas da dentadura..." (pág. 219 – A descrição continua...)
O capítulo XVI começa com um longo e minucioso pesadelo de Amâncio...
6) O naturalista manifesta tendência reformadoras: quando apresenta um mundo inferior, cheio de taras e doenças, com os seus personagens marcantemente anormais, a sua preocupação é a melhoria das condições sociais e geradoras de todo esse quadro clínico muito ruim. O narrador em terceira pessoa, onisciente e onipotente, de vez em quando faz seus comentários à margem.
"O que se lança ao peito da amante desde logo arde e evapora, porque aí o fogo é por demais intenso; o que se atira ao de um estranho gela-se de pronto na indiferença e na aridez; mas, tudo aquilo que um filho semeia no coração materno, brota, floreja e produz consolações. Neste não há chama que devore, nem frio que enregele, mas um doce amornecer, suave e fecundo, como a palidez de um seio intumescido e ressumbrante de leite..." (pág. 43).
"Assim sucede sempre aos filhos educados à portuguesa, cujos pais sentem vexames de lhes patentear o seu amor." (pág. 167)
7) Com relação ao vocabulário o romancista naturalista manifesta preferências por palavras científicas ou pseudo-científicas na busca de exprimir-se com o máximo de exatidão. Vejamos alguns exemplos:
"Conseguiram fazê-lo viver, mas sempre fraquinho, anêmico, muito propenso aos ingurgitamentos escrofulosos..." (pág. 29).
"... não se contrai ao fartum insalubre das variolóides..." (190)
"... no desespero de sua ortopnéia..." (219)
"... na sua distanasia." (220)
"... desde a ponta dos dedos até os bíceps" (237)
"... boca devastada por uma anodontia horrorosa." (299)
Aspectos Sociais
Como em O Cortiço, Aluísio de Azevedo se torna excepcionalmente rico na criação de personagens coletivos: a casa de pensão, tão comum ainda hoje, no Brasil inteiro, tem vida, uma vida estudante, nas páginas do romance. Aluísio conhecia, de experiência própria, esse ambiente feito de tantos quartos e tantos inquilinos, tão numerosos e tão diferentes, nivelados pela mediocridade e em fácil decadência moral. O autor faz alguns retratos com evidentes traços caricaturais (a sua velha mania ou vocação para a caricatura...), mas fiéis e verdadeiros. Tudo se movimenta diante do leitor: a casa de pensão é um mundo diferente, gente e coisas tomam aspectos novos, as pessoas adquirem outros hábitos, informadas ou deformadas por essa vida comunitária tão promíscua. Aí se encontram e se desencontram, se amontoam e se separam tantos indivíduos transformados em tipos, conhecidos, às vezes, apenas pelo número do quarto. No "Cortiço" o meio social é mais baixo; na "Casa de Pensão" é médio.
Às doenças morais (promiscuidades, hipocrisia, desonestidades, sensualismos excitados e excitantes, ódios, baixos interesses, dinheiro...) se misturam também doenças físicas (o tuberculoso do quarto 7 que morre na casa de pensão, a loucura e histerismo de Nini...). Foi o que encontrou Amâncio na "Casa de Pensão" de Mme. Brizard. Fora para o Rio de Janeiro, para estudar. E, num ambiente como esse, quem seria capaz de estudar? É verdade que o rapaz já trazia a sua mentalidade burguesa do tempo: o que ele buscava não era uma profissão, mas apenas um diploma e um título de doutor. Ele, sendo rico, não precisaria da profissão, mas, por vaidade, de um status, de um anel no dedo e de um diploma na parede. Essa mania de doutor, doença que pegou no Brasil, já foi magistralmente caricaturada em deliciosa carta de Eça de Queirós ao nosso Eduardo Prado: "A nação inteira se doutorou. Do norte ao sul do Brasil, não há, não encontrei senão doutores! Doutores com toda a sorte de insígnias, em toda a sorte de funções!! Doutores com uma espada, comandando soldados; doutores com uma carteira, fundando bancos: doutores com uma sonda, capitaneando navios; doutores com uma apito, comandando a polícia; doutores com uma lira, soltando carnes; doutores com um prumo, construindo edifícios; doutores com balanças, ministrando drogas; doutores sem coisa alguma, governando o Estado! Todos doutores..." (A Correspondência de Fradique Mendes – Lello e Irmão Edit. Porto – 1952 – pág. 235). O próprio Aluísio de Azevedo abandonou a Província para buscar sucessos na Corte (Rio de Janeiro) e, certamente também, um título de doutor...
Que vocação tinha Amâncio para a medicina?
"Não se trata aqui de fazer um médico, trata-se de fazer um doutor, seja ele do que bem quiser! Não se trata de ganhar uma profissão, trata-se de obter um título. Tu não precisas de meios de vida, precisas é de uma posição na sociedade." (Casa de Pensão – pág. 43). A saída de Amâncio de seu meio provincial, por necessidade de estudar, produz uma pletora no Rio de Janeiro de tantos e tão diversos tipos de estudantes, provenientes dos mais variados pontos do nosso imenso país: no Rio eles aprendem com facilidade, com verdadeiros professores, as artes não de estudar, mas de passar de ano. Coqueiro foi quem instruiu seu protegido Amâncio nos truques dos apadrinhamentos e protecionismos especiais (pistolões) para ser aprovado, apesar da maré cheia de sua ignorância.
Como conseqüência do meio e das intenções dos donos da pensão, acontece, de modo fatalístico, a sedução de Amélia. O fato tem repercussões sociais: quase toda a classe estudantil fica a favor do estudante, vítima do meio, dos ardis de todos (Mme. Brizard e Coqueiro), da própria Amélia... dos camarões. No apoio a Amâncio estava um apoio também ao machismo, mas de ... conquistador. Amâncio aparece sempre condicionado e pré-determinado para o seu final trágico, por causa do extremo sensualismo. É o erótico que tenta conquistar até a mulher de seu protetor, o Campos. O erotismo é apontado como um dos nossos defeitos, por excesso, em Bandeirantes e Pioneiros (Paulo Prado). Sobre os excessos sexuais e suas doenças, Gilberto Freyre (Casa Grande e Senzala) faz um trocadilho muito significativo: "no Brasil, antes da civilização, tivemos a sifilização..." Mme. Brizard e João Coqueiro são apresentados ao leitor como antipáticos e condenáveis, pela sua ganância de dinheiro, pelo seu mau caráter: ambos estão comprometidos gravemente no verdadeiro negócio de vender ou alugar Amélia. Ela era o meio de arrancar dinheiro fácil do rico Amâncio. A culpa principal é, sem dúvida, a própria Amélia, pivô da tragédia. Refletindo os seus próprios problemas familiares, Aluísio Azevedo aponta também erros da educação caseira e escolar. O pai do autor o tratava com certa distância, como o pai de Amâncio que era secarrão, sem diálogo, duro em apoiar os métodos coercitivos e antipedagógicos do prof. Pires. Tanto o pai como o professor ficaram como verdadeiros espantalhos e deixaram marcas na formação do rapaz, tornando-o recalcado e hipócrita. Por seu lado, D. Ângela se mostra sempre muito submissa ao marido, à moda antiga, e muito sentimental no relacionamento com seu filho. Então, os extremos, materno e paterno, se juntam para deformar para sempre a educação de Amâncio.
Outro fator decisivo na corrupção final do estudante é o dinheiro fácil com que ele se engolfa em farras e boêmia e se afasta dos livros. É com razão que Lúcia Miguel Pereira sintetiza toda a dinâmica do romance em duas palavras fundamentais:
"Na Casa de Pensão, tudo gira em torno da cupidez da carne ou do dinheiro, inoculada em todas as personagens pela herança mórbida ou pela sociedade". (Prosa de Ficção – Liv. José Olympio Edit. – Rio de Janeiro – 1957 – 2ª ed. – pág. 152).
Ainda como exemplo desse vento social que sopra por todo o romance e pelos outros melhores do autor, note-se o estudo que faz dos movimentos de massa, as flutuações da opinião pública, a posição a favor de Amâncio e, para o fim, uma clara insinuação de que já começa a tomar partido a favor de Coqueiro e sua irmã. O autor não aprofunda esse seu estudo de psicologia de massa, mas apresenta, apesar de superficial, um quadro interessante e válido.
Se o romance continuasse..., o leitor pode deduzir, com bastante garantia, a massa popular estaria pressionando o júri para a absolvição de João Coqueiro, por legítima defesa da honra da irmã.
Linguagem
Não se pode dizer que a lingua(gem) do romance é regionalista; pelo contrário, o padrão da língua usada é geral e o torneio frasal, a estrutura morfo-sintática é completamente fiel aos padrões da velha gramática portuguesa.
Como Machado de Assis, Aluísio Azevedo também usa alguns recursos desconhecidos da língua portuguesa do Brasil, principalmente na língua oral. Assim, por exemplo, o caso da apossínclise. É uma posição especial do pronome oblíquo que não escutamos no Brasil, mas é comum até na língua popular de Portugal. São exemplos de apossínclise: "Há anos que me não encontro com o amigo." (Há anos que não me...) "Se me não engano, você está certo." Creio que este lusitanismo reflete o tempo: era moda brasileira imitar a sintaxe portuguesa. Tenho exemplos de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo, Martins Pena, Machado de Assis... Em Casa de Pensão essa posição pronominal é um hábito comum. Pode-se definir o fenômeno de colocação como o faz Caldas Aulete:
"Apossínclise: intercalação de alguma ou algumas palavras entre o verbo e o pronome complemento átono, como, por exemplo: "o que lhe eu contei, em vez de: o que eu lhe contei..." (Edit. Delta S.A. – Rio – 1964 – 5ª ed. in verbete).
O hoje esquecido gramático português, antigamente muito em voga, Cândido de Figueiredo, publicou uma obra em três volumes com este título: "O que se não deve dizer".
Como são muitos os exemplos colhidos no romance, exemplifiquemos apenas:
"Que se não deixasse levar pelos pândegos..." (55)
"... o que lhe não desejo" (56)
"Amâncio já se não lembrava" (62)
"... porque ela se não desprendesse logo" (73)
"São dessas coisas que se não explicam" (103)
"... hás de ver que te não faltará nada" (104)
"Amâncio já os não distinguia" (119)
"... já se não preocupa" (127)
"... já se não podia conter" (143)
"... de tal modo que se não pode levantar da cama" (169)
"... que se não deixasse visgar..." (205)
"Que ela já o não deixava sair" (234)
"Se me não engano" (334)
O tratamento usado pelo autor também é diferente do comum no Brasil (exceto Rio Grande do Sul, por exemplo): tu em vez de você. Os personagens, quando se ratam por iguais, empregam sempre a Segunda pessoa do singular.
"Bem, de acordo, respondeu Coqueiro, mas é preciso deixar esse tratamento de senhor. Entre rapazes não deve haver cerimônias mal entendidas; somos colegas, temos de ser amigos, por conseguinte tratemo-nos desde já por tu" (56).
"Mesmo escrevendo o diálogo quase sempre em norma culta, Aluísio soube fixar algumas características dos níveis mais baixos..." (Dino Preti – Siciolinguística – Cia Edit. Nacional – S. Paulo – 1974 – pág. 137). Conforme a situação e o status do personagem, a linguagem desce a níveis inferiores.
O vocabulário do autor, às vezes, soa esquisito aos nossos ouvidos. Maria de Lourdes Teixeira cita alguns exemplos:
À página 56 encontramos esta frase: "... continuava a parolar com embófia". Ora, o substantivo embófia ou sua variante, empófia, de origem asiática e muito encontrável em frei João dos Santos, em sua obra Etiópia Oriental, não me parece usado no Brasil. Da mesma forma, o verbo aiar (gemer), particularmente caro a Castilho, e que jamais vi em nossos autores, lá está na página 63: "Amâncio, muito prostrado, mole, a virar-se de uma para outra banda, aia-va sempre". Na página 65 aparece o adjetivo retardia (empregado com freqüência por Filinto Elíseo), em lugar de retardatário, tardo, vagaroso. Na página 66: "o homem do lixo entrava, e saía, familiarmente, com o seu gigo às costas".
Gigo, em vez de cesto ou cabaz, vocábulo aquele muito usado por Ramalho Ortigão nas Farpas. Na mesma página se refere a "uma escova de fato", em lugar de escova de roupa, forma aquela não brasileira e que dá azo a duplo sentido. E linhas abaixo: "encontrou uma rapariguita de alguns dezesseis anos", frase cuja construção nada tem de brasileira, parecendo antes coligida de autor português. Na página 105 o romancista menciona uma "corbelha de farinha"; isto é, a nossa familiar e nacionalíssima farinheira. Lembre-se a propósito que tal expressão, corbelha, de boa linhagem vernácula mas admitida em uso no Brasil através do francês, é encontrada em Diniz, no Hissope, e em Castilho, nas Geórgicas. Na página 121 lá está, por sinal que na boca de uma francesa – Madame Brizard – certo ditado arcaico português que se encontra na Eufrosina, de Jorge Ferreira de Vasconcelos: "por aí não irá o fato às filhoses". No clássico citado: "não vay por ahi o gato aos filhós." Logo na página seguinte Aluísio emprega o substantivo godilhão, em lugar de nó, grumo, ou qualquer outro sinônimo de uso corrente no Brasil: "formar-lhe godilhões na garganta". Na página 192 ressalta em certa frase outro vocábulo estranho e ouvidos nacionais: "A sua primeira idéia foi chamar o Pereira e mostrar-lhe a mulher no latíbulo do amante". O substantivo latíbulo, que me lembre nunca encontrado em outro autor brasileiro (e que significa "antro de pecado, esconderijo da perdição), é muito usado por Bernardes da Nova Floresta e por outros clássicos portugueses.
(Esfinges de Papel – Edart – S. Paulo – 1966 – pág. 138).
"A obra de Aluísio Azevedo, portanto, revela-se útil, sobretudo como documento da língua e da cultura de nossa sociedade, nas décadas de 80 e 90, ainda muito impregnadas da influência portuguesa. Além disso a rudeza dos temas que abordou nos permite o conhecimento de uma linguagem afetiva popular, que em muito contribui para a retratação dos níveis de fala de suas personagens". (Dino Preti – ib. pág. 140).
Técnicas Narrativas
O problema da criação de um personagem romanesco vira mistério até para o próprio autor. Criado o personagem, ninguém sabe, nem o seu criador, até onde trabalhou a sua imaginação e onde começa a simples observação da realidade circunstante. O personagem se pode identificar com esta ou aquela pessoa real? Ou nasceu totalmente da imaginação onipotente do romancista? Nem um extremo nem outro pode corresponder à realidade da criação literária
"O ficcionista pode usar uma pessoa que conheceu como ponto de partida para a composição duma personagem, mas tendo o cuidado de evitar a fotografia servil. É justamente durante esse processo de despistamento ou então no minuto em que o autor resolve criar uma personagem sua, sua mesmo, que o computador insidiosamente começa a mandar-lhe mensagens, e o autor corre o risco de usar esses elementos com orgulho demiúrgico, convencido de que está mesmo criando do nada..." (Érico Veríssimo – Aguilar – vol. III – pág. 83). Note-se que o computador a que se refere Érico Veríssimo é o fantástico inconsciente...
Em Casa de Pensão, o autor escolheu o seu ponto-de-vista narrativo: a terceira pessoa do singular, um narrador onisciente e onipotente, fora do elenco dos personagens. Como um observador atento e minucioso dentro das próprias fórmulas apertadas do naturalismo. No caso deste romance, Aluísio Azevedo trabalhou muito servilmente sobre os fatos absolutamente reais. (Ver Estilo de época). Temos portanto um romance à clef, romance de chave, porque os personagens, sob nomes fictícios, escondem pessoas reais. Assim podemos identificar os figurantes principais.
Amâncio da Silva Bastos e Vasconcelos = João Capistrano da Silva, estudante, acusado de sedução. Foi absolvido.
Amélia ou Amelita = Júlia Pereira, a moça seduzida, pivô da tragédia.
Mme. Brizard = é uma viúva, dona da casa de pensão: D. Júlia Clara Pereira, mãe da moça e do rapaz, assassino.
João Coqueiro = Janjão = Antônio Alexandre Pereira, irmão da moça Júlia Pereira e assassino de João Capistrano. Foi também absolvido.
Dr. Teles de Moura = Dr. Jansen de Castro Júnior, advogado da família da moça.
João Capistrano foi acusado como incurso nas penas do art. 222, do Código Criminal do Império: "Ter cópula carnal por meio violento ou ameaças, com qualquer mulher honesta. Penas: de prisão por três ou doze anos, e de dotar a ofendida."
O autor toma visível posição a favor de Amâncio e contra Amélia, João Coqueiro e Mme. Brizard: (Raimundo de Menezes – Aluísio Azevedo – Uma vida de romance – Liv. Martins Edit. – S. Paulo – 1958 – pág. 151). O mesmo autor me informa que o romance já estava, em semente, em Casa de Cômodos (pág. 342).
A narrativa não obedece a uma ordem cronológica: o cap. I coloca o leitor diante de Amâncio e Campos, já no Rio de Janeiro. Depois é que o autor volta ao Maranhão para contar alguma coisa, o que é fundamental dentro das fórmulas naturalistas, da vida e da educação do personagem. Recorda a escola e a família, o leite que mamou da ama negra, leite contaminado, a dura opressão do professor e do pai... tudo para condicionar fatalisticamente o personagem e fazê-lo chegar, sem liberdade, aonde tinha que chegar. São os truques repetidos pela escola naturalista. (Veja-se, por exemplo, o mesmo determinismo em O Missionário de Inglês de Sousa). Essa volta é uma técnica comum que hoje se chama flash back, palavra tomada de empréstimo ao cinema.
Depois, a narrativa caminha, de modo geral linearmente e os episódios se passam só no Rio de Janeiro. Amâncio não faz viagens, planeja apenas a volta à Província: viagem que não chega a realizar pelos incidentes que o leitor conhece. Um pequeno paralelo que se fizesse entre o autor e Machado de Assis (lembrem-se de que Memórias Póstumas de Brás Cubas é da mesma data que O Mulato (1881) mostraria que Aluísio, diferente do romancista carioca, não faz descidas em profundidade na alma dos personagens. Eles se forma superficialmente sem pesquisas psicológicas, uma das características do autor de D. Casmurro. Sem desvalorizar o maranhense, pode-se afirmar que Machado de Assis realizou uma obra muito mais orgânica, até mesmo por vocação, por maior talento. Aluísio escreveu sob pressão ou opressão, enquanto tinha necessidade de sobreviver e até contrariado porque, segundo sua própria confissão, tina a vocação da pintura, do desenho, da caricatura, não da literatura. Acabada a necessidade premente de sobreviver, parou de escrever, definitivamente, engolfando-se na diplomacia.
Como narrador fora da estória, como já foi observado em outro lugar, o autor costuma fazer algumas observações marginais, inclusive como intenções críticas, sobre educação, sobre os personagens, sobre os fatos.
Pareceu-me feliz o corte final na narrativa para fechar o romance: não fez nenhum comentário a mais, o que seria excrescente. Já no Cortiço, Aluísio Azevedo ainda acrescenta à tragédia final de Bertoleza um pequeno e inútil comentário. Terminando como terminou deixa ao leitor o trabalho de perguntar o que irá acontecer ainda, como ficarão as coisas, sobretudo a situação de João Coqueiro. Será ou não absolvido? Se os fatos reais nos dão uma resposta (o assassino foi absolvido), o romance deixa em aberto. A mãe de Amâncio também desaparece com o final do romance numa atitude indecifrável: quais foram as suas reações diante do retrato do filho morto? Indecifrável no texto da narrativa e mito fácil para o sentimento e a imaginação de qualquer leitor.
Como um naturalista jura fidelidade à vida e à realidade, segundo as suas concepções de vida e de realidade, o final está de acordo: não há uma vitória do(s) herói(s), não há um fecho feliz. Quem é que diz que a vida obedece aos nossos desejos planos?
Crítica
1) "O autor começa entrando logo em cheio na ação do seu romance e, uma vez penetrando no círculo em que vivem os seus personagens, não se afasta mais deles, como que saturado de todos os elementos constitutivos do ambiente físico e moral da famosa casa de pensão, assunto do seu livro. Como trabalho de observação, o romance tem tudo quanto é lícito desejar em uma composição desta ordem. Fundando-se em um fato verdadeiro, que a cidade do rio de Janeiro presenciou há anos, compreende-se que a lógica dos caracteres mais dramáticos dessa história não podia falhar. Tendo, além disto, o romancista vivido em estabelecimentos da natureza do que descreve, estava perfeitamente habilitado a dar toda a unidade possível à vida do grupo humano que se encarregou de estudar................................"
"A Casa de Pensão é um microcosmo: todos os elementos que o constituem, por um processo felicíssimo de cerebração inconsciente, atraem-se, repelem-se, aglutinam-se e dão, por último, uma sensação que pode muito bem ser comparada à reminiscência, em dias febricitantes e de hiperestesia mnemônica, de sucessos presenciados em alguma parte." (Obra Crítica de Araripe Jr. – M.E.C – Casa de Rui Barbosa – Rio – 1960 – vol. II – pág. 84 e 85).
2) "Ele trouxe à nossa ficção mais justo sentimento da realidade, arte mais perfeita de sua figuração, maior interesse humano, inteligência mais clara dos fenômenos sociais e da alma individual, expressão mais apurada, em suma, uma representação menos defeituosa da nossa vida, que pretendia definir. Dos que aqui por vocação ou mero instinto de imitação demasiado comum das nossas letras, seguiram o naturalismo e se nele ensaiaram, o que mais cabalmente realizou este feito da nossa doutrina literária foi Aluísio Azevedo, com uma obra de mérito e influência consideráveis..." (História da Literatura Brasileira – José Veríssimo – Liv. Francisco Alves – Rio – 1916 – pág. 336).
3) "Na Casa de Pensão, tudo gira em torno da cupidez da carne ou do dinheiro, inoculada em todas as personagens pela herança mórbida ou pela sociedade. Entretanto, e nisso reside a prova do talento de romancista de Aluísio Azevedo, tomados em conjunto, esses bonecos de engonço adquirem inesperada vitalidade. Se a vida interior é quase nula, a vida de relação é ativa e real. Desde que se trate de contatos superficiais, a narrativa se movimenta, ganha força e nervo... Da soma das criaturas e duas dimensões surge uma entidade nova – a casa de pensão, com os seus moradores de uma psicologia especial, pobres criaturas desenraizadas pela enxurrada da vida, provenientes dos meios os mais diversos, que adquirem uma espécie de alma comum, feita pela solidariedade negativa que as une." (Prosa de Ficção – Lúcia Miguel Pereira – Liv. José Olympio Edit. – Rio – 1957 – 2ª ed. pág. 152 – 153).
4)" Em Casa de Pensão, realmente, há qualidades marcantes de ficcionista, e o ambiente, o das habitações coletivas, conhecido do autor, e a marca que deixa nas criaturas, também por ele experimentada, ficam excelentemente representadas.".....
"Aluísio Azevedo é um exemplo, no naturalismo brasileiro, do escritor que trabalha constrangido pela fórmula e que vacila entre o desgregamento romântico, a que se submete demasiado facilmente, embora lamentando o fato, e o espartilho naturalista, que o deixa peado, a que obedece a contragosto." (História da Literatura Brasileira – Nelson Werneck Sodré – Liv. José Olympio Edit. – Rio – 1960 – 3ª ed. – pág. 360 – 361).
5) "Em Casa de Pensão – cronologicamente, o primeiro grande romance de Aluísio, depois de O Mulato, o romancista marca a transição de dois ambientes: o do Maranhão, de que provinha, e o do Rio de Janeiro, a que se adaptara. Este livro, pelo aglomerado humano que esboça, é uma espécie de preparação para a experiência mais profunda e mais ampla de O Cortiço. Nele encontramos o Aluísio aprimorado, senhor da técnica da narração, mestre da fixação de tipos e caracteres, a conduzir o drama ou aventura de seus personagens com o rigor da justa medida. Não há excessos em suas páginas. O próprio desfecho que poderia parecer arbitrário, é uma transposição do caso real para o romance." (Aluísio Azevedo – Josué Motello – Agir – 1963 – pág. 11 – 12).
6) "Em Casa de Pensão, de 1884, que firmam melhor as qualidades do escritor. Nesse romance mostra-se ele mais senhor do ofício. A apresentação dos personagens, a descrição das cenas, a evolução do enredo, são realizados com maior senso de objetividade e equilíbrio. Reveste-se de toda a sobriedade o momento em que Amâncio se apresenta a Campos, interrompendo-lhe a correspondência para o norte. Nem são destituídos de vida episódios de boêmia carioca. Muitos personagens exsudam vida, como aquele Campos ou a esposa, Hortênsia. Não se isenta, entretanto, de lacunas. Há criaturas, como João Coqueiro ou Amelinha, em cujos perfis o autor se gasta em tintas naturalistas e que acabam por se afogar no convencionalismo. Há outros, como Amâncio, de que temos a impressão de que vivem de real vida para logo em seguida sentirmos baldos de realidade." (A Literatura Brasileira – O Realismo – João Pacheco – Edit. Cultrix – S. Paulo – 1963 – pág. 135).
7) "Não resta dúvida que a obra de Aluísio Azevedo resiste ao tempo e ao desgaste das escolas, por revelar força criadora incomum em nossa ficção e por se conjugarem nela a observação da realidade brasileira com seus problemas sociais, a experiência humana e o conhecimento artesanal. E todos esses atributos impulsionados por intensa vibração participante, bem típica não só do temperamento do autor como de sua filiação naturalista.
Respeitadas as características de cada um e as conseqüentes diferenciações, pode-se dizer que as obras de Aluísio Azevedo, José de Alencar e Machado de Assis constituem as colunas de resistência do romance brasileiro do passado. E nessa trindade de valores o lugar ocupado pelo maranhense tem, além disso, especial significação historiográfica, sendo ele como é o tal como o concebeu Zola, com os seus postulados: a crítica da sociedade, "a ciência dos temperamentos", a anatomia dos caracteres, a patologia das paixões, a determinação exata das circunstâncias, as finalidades éticas e, de acordo com o pensamento de Eça de Queirós, os ideais de justiça e verdade."
(Maria de Lourdes Teixeira – ibidem – pág. 139).
NOTA: as páginas indicadas de Casa de Pensão se referem ao volume das Edições de Ouro, s.d.
Morte e vida severina(Auto de Natal Pernambucano)
João Cabral de Melo Neto

O RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR QUEM É E A QUE VAI

— O meu nome é Severino,
como não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria;
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
Mas isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacariase
que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem fala
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
e iguais também porque o sangue
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertarterra
sempre mais extinta,
a de querer arrancar
algum roçado da cinza.
Mas, para que me conheça
mmelhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história de minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra.

ENCONTRA DOIS HOMENS CARREGANDO
UM DEFUNTO NUMA REDE,
AOS GRITOS DE "Ó IRMÃOS DAS ALMAS!
IRMÃOS DAS ALMAS! NÃO FUI EU
QUE MATEI NÃO!"

— A quem estais carregando,
irmãos das almas,
embrulhado nessa rede?
dizei que eu saiba.
— A um defunto de nada,
irmão das almas,
que há muitas horas viaja
à sua morada.
— E sabeis quem era ele,
irmãos das almas,
sabeis como ele se chama
ou se chamava?
— Severino Lavrador,
irmão das almas,
Severino Lavrador,
mas já não lavra.
— E de onde que o estais trazendo,
irmãos das almas,
onde foi que começou
vossa jornada?
— Onde a Caatinga é mais seca,
irmão das almas,
onde uma terra que não dá
nem planta brava.
— E foi morrida essa morte,
irmãos das almas,
essa foi morte morrida
ou foi matada?
— Até que não foi morrida,
irmão das almas,
esta foi morte matada,
numa emboscada.
— E o que guardava a emboscada,
irmão das almas,
e com que foi que o mataram,
com faca ou bala?
— Este foi morto de bala,
irmão das almas,
mais garantido é de bala,
mais longe vara.
— E quem foi que o emboscou,
irmãos das almas,
quem contra ele soltou
essa ave-bala?
— Ali é difícil dizer,
irmão das almas,
sempre há uma bala voando
desocupada.
— E o que havia ele feito,
irmãos das almas,
e o que havia ele feito
contra a tal pássara?
— Ter um hectares de terra,
irmão das almas,
de pedra e areia lavada
que cultivava.
— Mas que roças que ele tinha,
irmãos das almas,
que podia ele plantar
na pedra avara?
— Nos magros lábios de areia,
irmão das almas,
os intervalos das pedras,
plantava palha.
— E era grande sua lavoura,
irmãos das almas,
lavoura de muitas covas,
tão cobiçada?
— Tinha somente dez quadros,
irmão das almas,
todas nos ombros da serra,
nenhuma várzea.
— Mas então por que o mataram,
irmãos das almas,
mas então por que o mataram
com espingarda?
— Queria mais espalhar-se,
irmão das almas,
queria voar mais livre
essa ave-bala.
— E agora o que passará,
irmãos das almas,
o que é que acontecerá
contra a espingarda?
— Mais campo tem para soltar,
irmão das almas,
tem mais onde fazer voar
as filhas-bala.
— E onde o levais a enterrar,
irmãos das almas,
com a semente de chumbo
que tem guardada?
— Ao cemitério de Torres,
irmão das almas,
que hoje se diz Toritama,
de madrugada.
— E poderei ajudar,
irmãos das almas?
vou passar por Toritama,
é minha estrada.
— Bem que poderá ajudar,
irmão das almas,
é irmão das almas quem ouve
nossa chamada.
— E um de nós pode voltar,
irmão das almas,
pode voltar daqui mesmo
para sua casa.
— Vou eu, que a viagem é longa,
irmãos das almas,
é muito longa a viagem
e a serra é alta.
— Mais sorte tem o defunto,
irmãos das almas,
pois já não fará na volta
a caminhada.
— Toritama não cai longe,
irmão das almas,
seremos no campo santo
de madrugada.
— Partamos enquanto é noite,
irmão das almas,
que é o melhor lençol dos mortos
noite fechada.

O RETIRANTE TEM MEDO DE SE EXTRAVIAR
PORQUE SEU GUIA, O RIO CAPIBARIBE,
CORTOU COM O VERÃO

— Antes de sair de casa
aprendi a ladainha
das vilas que vou passar
na minha longa descida.
Sei que há muitas vilas grandes,
cidades que elas são ditas;
sei que há simples arruados,
sei que há vilas pequeninas,
todas formando um rosário
cujas contas fossem vilas,
todas formando um rosário
de que a estrada fosse a linha.
Devo rezar tal rosário
até o mar onde termina,
saltando de conta em conta,
passando de vila em vila.
Vejo agora: não é fácil
seguir essa ladainha;
entre uma conta e outra conta,
entre uma a outra ave-maria,
há certas paragens brancas,
de planta e bicho vazias,
vazias até de donos,
e onde o pé se descaminha.
Não desejo emaranhar
o fio de minha linha
nem que se enrede no pêlo
hirsuto desta caatinga.
Pensei que seguindo o rio
eu jamais me perderia:
ele é o caminho mais certo,
de todos o melhor guia.
Mas como segui-lo agora
que interrompeu a descida?
Vejo que o Capibaribe,
como os rios lá de cima,
é tão pobre que nem sempre
pode cumprir sua sina
e no verão também corta,
com pernas que não caminham.
Tenho de saber agoraqual a verdadeira via
entre essas que escancaradas
frente a mim se multiplicam.
Mas não vejo almas aqui,
nem almas mortas nem vivas;
ouço somente à distância
o que parece cantoria.
Será novena de santo,
será algum mês-de-Maria;
quem sabe até se uma festa
ou uma dança não seria?

NA CASA A QUE O RETIRANTE CHEGA
ESTÃO CANTANDO EXCELÊNCIAS
PARA UM DEFUNTO, ENQUANTO UM HOMEM,
DO LADO DE FORA,
VAI PARODIANDO AS PALAVRAS DOS CANTADORES

— Finado Severino,
quando passares em Jordão
e o demônios te atalharem
perguntando o que é que levas...
— Dize que levas cera,
capuz e cordão
mais a Virgem da Conceição.
— Finado Severino, etc. ...
— Dize que levas somente
coisas de não:
fome, sede, privação.
— Finado Severino, etc. ...
— Dize que coisas de não,
ocas, leves: como o caixão,
que ainda deves.
— Uma excelência
dizendo que a hora é hora.
— Ajunta os carregadores
que o corpo quer ir embora.
— Duas excelências...
— ... dizendo é a hora da plantação.
— Ajunta os carregadores...
— ... que a terra vai colher a mão.

CANSADO DA VIAGEM
O RETIRANTE PENSA INTERROMPÊ-LA
POR UNS INSTANTES
E PROCURAR TRABALHO ALI ONDE SE ENCONTRA.

— Desde que estou retirando
só a morte vejo ativa,
só a morte deparei
e às vezes até festiva;
só a morte tem encontrado
quem pensava encontrar vida,
e o pouco que não foi morte
foi de vida severina
(aquela vida que é menos
vivida que defendida,
e é ainda mais severina
para o homem que retira).
Penso agora: mas porque
parar aqui eu não podia
e como o Capibaribe
interromper minha linha?
ao menos até que as águas
de uma próxima invernia
me levem direto ao mar
ao refazer sua rotina?
Na verdade, por uns tempos,
parar aqui eu bem podia
e retomar a viagem
quando vencesse a fadiga.
Ou será que aqui cortando
agora minha descida
já não poderei seguir
nunca mais em minha vida?
(será que a água destes poços
é toda aqui consumida
pelas roças, pelos bichos,
pelo sol com suas línguas?
será que quando chegar
o rio da nova invernia
um resto de água no antigo
sobrará nos poços ainda?)
Mas isso depois verei:
tempo há para que decida;
primeiro é preciso achar
um trabalho de que viva.
Vejo uma mulher na janela,
ali, que se não é rica,
parece remediada
ou dona de sua vida:
vou saber se de trabalho
poderá me dar notícia.

DIRIGE-SE À MULHER NA JANELA
QUE DEPOIS DESCOBRE
TRATAR-SE DE QUEM SE SABERÁ

— Muito bom dia, senhora,
que nessa janela está;
sabe dizer se é possível
algum trabalho encontrar?
— Trabalho aqui nunca falta
a quem sabe trabalhar;
o que fazia o compadre
na sua terra de lá?
— Pois fui sempre lavrador,
lavrador de terra má;
não há espécie de terra
que eu não possa cultivar.
— Isso aqui de nada adianta,
pouco existe o que lavrar;
mas diga-me, retirante,
que mais fazia por lá?
— Também lá na minha terra
de terra mesmo pouco há;
mas até a calva da pedra
sinto-me capaz de arar.
— Também de pouco adianta,
nem pedra há aqui que amassar;
diga-me ainda, compadre,
que mais fazia por lá?
— Conheço todas as roças
que nesta chã podem dar:
o algodão, a mamona,
a pita, o milho, o caroá.
— Esses roçados o banco
já não quer financiar;
mas diga-me, retirante,
o que mais fazia lá?
— Melhor do que eu ninguém
sei combater, quiçá,
tanta planta de rapina
que tenho visto por cá.
— Essas plantas de rapina
são tudo o que a terra dá;
diga-me ainda, compadre;
que mais fazia por lá?
— Tirei mandioca de chãs
que o vento vive a esfolar
e de outras escalavradas
pela seca faca solar.
— Isto aqui não é Vitória
nem é Glória do Goitá;
e além da terra, me diga,
que mais sabe trabalhar?
— Sei também tratar de gado,
entre urtigas pastorear:
gado de comer do chão
ou de comer ramas no ar.
— Aqui não é Surubim
nem Limoeiro, oxalá!
mas diga-me, retirante,
que mais fazia por lá?
— Em qualquer das cinco tachas
de um banguê sei cozinhar;
sei cuidar de uma moenda,
de uma casa de purgar.
— Com a vinda das usinas
há poucos engenhos já;
nada mais o retirante
aprendeu a fazer lá?
— Ali ninguém aprendeu
outro ofício, ou aprenderá:
mas o sol, de sol a sol,
bem se aprende a suportar.
— Mas isso então será tudo
em que sabe trabalhar?
vamos, diga, retirante,
outras coisas saberá.
— Deseja mesmo saber
o que eu fazia por lá?
comer quando havia o quê
e, havendo ou não, trabalhar.
— Essa vida por aqui
é coisa familiar;
mas diga-me retirante,
sabe benditos rezar?
sabe cantar excelências,
defuntos encomendar?
sabe tirar ladainhas,
sabe mortos enterrar?
— Já velei muitos defuntos,
na serra é coisa vulgar;
mas nunca aprendi as rezas,
sei somente acompanhar.
— Pois se o compadre soubesse
rezar ou mesmo cantar,
trabalhávamos a meias,
que a freguesia bem dá.
— Agora se me permite
minha vez de perguntar:
como senhora, comadre,
pode manter o seu lar?
— Vou explicar rapidamente,
logo compreenderá:
como aqui a morte é tanta,
vivo de a morte ajudar.
— E ainda se me permite
que volte a perguntar:
é aqui uma profissão
trabalho tão singular?
— É, sim, uma profissão,
e a melhor de quantas há:
sou de toda a região
rezadora titular.
— E ainda se me permite
mais outra vez indagar:
é boa essa profissão
em que a comadre ora está?
— De um raio de muitas léguas
vem gente aqui me chamar;
a verdade é que não pude
queixar-me ainda de azar.
— E se pela última vez
me permite perguntar:
não existe outro trabalho
para mim nesse lugar?
— Como aqui a morte é tanta,
só é possível trabalhar
nessas profissões que fazem
da morte ofício ou bazar.
Imagine que outra gente
de profissão similar,
farmacêuticos, coveiros,
doutor de anel no anular,
remando contra a corrente
da gente que baixa ao mar,
retirantes às avessas,
sobem do mar para cá.
Só os roçados da morte
compensam aqui cultivar,
e cultivá-los é fácil:
simples questão de plantar;
não se precisa de limpa,
de adubar nem de regar;
as estiagens e as pragas
fazem-nos mais prosperar;
e dão lucro imediato;
nem é preciso esperar
pela colheita: recebe-se
na hora mesma de semear.

O RETIRANTE CHEGA À ZONA DA MATA,
QUE O FAZ PENSAR, OUTRA VEZ,
EM INTERROMPER A VIAGEM

— Bem me diziam que a terra
se faz mais branda e macia
quando mais do litoral
a viagem se aproxima.
Agora afinal cheguei
nesta terra que diziam.
Como ela é uma terra doce
para os pés e para a vista.
Os rios que correm aqui
têm a água vitalícia.
Cacimbas por todo lado;
cavando o chão, água mina.
Vejo agora que é verdade
o que pensei ser mentira.
Quem sabe se nesta terra
não plantarei minha sina?
Não tenho medo de terra
(cavei pedra toda a vida),
e para quem lutou a braço
contra a piçarra da Caatinga
será fácil amansar
esta aqui, tão feminina.
Mas não avisto ninguém,
só folhas de cana fina;
somente ali à distância
aquele bueiro de usina;
somente naquela várzea
um banguê velho em ruína.
Por onde andará a gente
que tantas canas cultiva?
Feriando: que nesta terra
tão fácil, tão doce e rica,
não é preciso trabalhar
todas as horas do dia,
os dias todos do mês,
os meses todos da vida.
Decerto a gente daqui
jamais envelhece aos trinta
nem sabe da morte em vida,
vida em morte, severina;
e aquele cemitério ali,
branco na verde colina,
decerto pouco funciona
e poucas covas aninha.

ASSISTE AO ENTERRO
DE UM TRABALHADOR DE EITO
E OUVE O QUE DIZEM DO MORTO
OS AMIGOS QUE O LEVARAM AO CEMITÉRIO

— Essa cova em que estás,
com palmos medida,
é a cota menor
que tiraste em vida.
— É de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe
deste latifúndio.
— Não é cova grande,
é cova medida,
é a terra que querias
ver dividida.
— É uma cova grande
para teu pouco defunto,
mas estarás mais ancho
que estavas no mundo.
— É uma cova grande
para teu defunto parco,
porém mais que no mundo
te sentirás largo.
— É uma cova grande
para tua carne pouca,
mas a terra dada
não se abre a boca.
— Viverás, e para sempre,
na terra que aqui aforas:
e terás enfim tua roça.
— Aí ficarás para sempre,
livre do sol e da chuva,
criando tuas saúvas.
— Agora trabalharás
só para ti, não a meias,
como antes em terra alheia.
— Trabalharás uma terra
da qual, além de senhor,
serás homem de eito e trator.
— Trabalhando nessa terra,
tu sozinho tudo empreitas:
serás semente, adubo, colheita.
— Trabalharás numa terra
que também te abriga e te veste:
embora com o brim do Nordeste.
— Será de terra tua derradeira camisa:
te veste, como nunca em vida.
— Será de terra e tua melhor camisa:
te veste e ninguém cobiça.
— Terás de terra
completo agora o teu fato:
e pela primeira vez, sapato.
— Como és homem,
a terra te dará chapéu:
fosses mulher, xale ou véu.
— Tua roupa melhor
será de terra e não de fazenda:
não se rasga nem se remenda.
— Tua roupa melhor
e te ficará bem cingida:
como roupa feita à medida.
— Esse chão te é bem conhecido
(bebeu teu suor vendido).
— Esse chão te é bem conhecido
(bebeu o moço antigo).
— Esse chão te é bem conhecido
(bebeu tua força de marido).
— Desse chão és bem conhecido
(através de parentes e amigos).
— Desse chão és bem conhecido
(vive com tua mulher, teus filhos).
— Desse chão és bem conhecido
(te espera de recém-nascido).
— Não tens mais força contigo:
deixa-te semear ao comprido.
—Já não levas semente viva:
teu corpo é a própria maniva.
— Não levas rebolo de cana:
és o rebolo, e não de caiana.
— Não levas semente na mão:
és agora o próprio grão.
— Já não tens força na perna:
deixa-te semear na coveta.
— Já não tens força na mão:
deixa-te semear no leirão.
— Dentro da rede não vinha nada,
só tua espiga debulhada.
— Dentro da rede vinha tudo,
só tua espiga no sabugo.
— Dentro da rede coisa vasqueira,
só a maçaroca banguela.
— Dentro da rede coisa pouca,
tua vida que deu sem soca.
— Na mão direita um rosário,
milho negro e ressecado.
— Na mão direita somente
o rosário, seca semente
.— Na mão direita,
de cinza,o rosário,
semente maninha.
— Na mão direita o rosário,
semente inerte e sem salto.
— Despido vieste no caixão,
despido também se enterra o grão.
— De tanto te despiu a privação
que escapou de teu peito a viração.
— Tanta coisa despiste em vida
que fugiu de teu peito a brisa.
— E agora, se abre o chão e te abriga,
lençol que não tiveste em vida.
— Se abre o chão e te fecha,
dando-te agora cama e coberta.
— Se abre o chão e te envolve,
como mulher com quem se dorme.


O RETIRANTE RESOLVE
APRESSAR OS PASSOS
PARA CHEGAR LOGO AO RECIFE

— Nunca esperei muita coisa,
digo a Vossas Senhorias.
O que me fez retirar
não foi a grande cobiça;
o que apenas busquei
foi defender minha vida
de tal velhice que chega
antes de se inteirar trinta;
se na serra vivi vinte,
se alcancei lá tal medida,
o que pensei, retirando,
foi estendê-la um pouco ainda.
Mas não senti diferença
entre o Agreste e a Caatinga,
e entre a Caatinga e aqui a Mata
a diferença é a mais mínima.
Está apenas em que a terra
é por aqui mais macia;
está apenas no pavio,
ou melhor, na lamparina:
pois é igual o querosene
que em toda parte ilumina,
e quer nesta terra gorda
quer na serra, de caliça,
a vida arde sempre, com
a mesma chama mortiça.
Agora é que compreendo
porque em paragens tão ricas
o rio não corta em poços
como ele faz na Caatinga:
vivi a fugir dos remansos
a que a paisagem o convida,
com medo de se deter
grande que seja a fadiga.
Sim, o melhor é apressar
o fim desta ladainha,
o fim do rosário de nomes
que a linha do rio enfia;
é chegar logo ao Recife,
derradeira ave-maria
do rosário, derradeira
invocação da ladainha,
Recife, onde o rio some
e esta minha viagem se fina.


CHEGANDO AO RECIFE,
O RETIRANTE SENTA-SE
PARA DESCANSAR
AO PÉ DE UM MURO ALTO E CAIADO
E OUVE, SEM SER NOTADO,
A CONVERSA DE DOIS COVEIROS

— O dia de hoje está difícil;
não sei onde vamos parar.
Deviam dar um aumento,
ao menos aos deste setor de cá.
As avenidas do centro são melhores,
mas são para os protegidos:
há sempre menos trabalho
e gorjetas pelo serviço;
e é mais numeroso o pessoal
(toma mais tempo enterrar os ricos).
— Pois eu me daria por contente
se me mandassem para cá.
Se trabalhasses no de Casa Amarela
não estarias a reclamar.
De trabalhar no de Santo Amaro
deve alegrar-se o colega
porque parece que a gente
que se enterra no de Casa Amarela
está decidida a mudar-se
toda para debaixo da terra.
— É que o colega ainda não viu
o movimento: não é o que se vê.
Fique-se por aí um momento
e não tardarão a aparecer
os defuntos que ainda hoje
vão chegar (ou partir, não sei).
As avenidas do centro,
onde se enterram os ricos,
são como o porto do mar:
não é muito ali o serviço:
no máximo um transatlântico
chega ali cada dia,
com muita pompa,
protocolo,e ainda mais cenografia.
Mas este setor de cá
é como a estação dos trens:
diversas vezes por dia
chega o comboio de alguém.
— Mas se teu setor é comparado
à estação central dos trens,
o que dizer de Casa Amarela
onde não pára o vaivém?
Pode ser uma estação
mas não estação de trem:
será parada de ônibus,
com filas de mais de cem.
— Então por que não pedes,
já que és de carreira, e antigo,
que te mandem para Santo Amaro
se achas mais leve o serviço?
Não creio que te mandassem
para as belas avenidas
onde estão os endereços
e o bairro da gente fina:
isto é, para o bairro dos usineiros,
dos políticos, dos banqueiros,
e no tempo antigo, dos banguezeiros
(hoje estes se enterram em carneiros);
bairro também dos industriais,
dos membros das associações patronais
e dos que foram mais horizontais
nas profissões liberais.
Difícil é que consigas
aquele bairro, logo de saída.
— Só pedi que me mandassem
para as urbanizações discretas,
com seus quarteirões apertados,
com suas cômodas de pedra.
— Esse é o bairro dos funcionários,
inclusive extranumerários,
contratados e mensalistas
(menos os tarefeiros e diaristas).
Para lá vão os jornalistas,
os escritores, os artistas;
ali vão também os bancários,
as altas patentes dos comerciários,
os lojistas, os boticários,
os localizados aeroviários
e os de profissões liberais
que não se liberaram jamais.
— Também um bairro dessa gente
temos no de Casa Amarela:
cada um em seu escaninho,
cada um em sua gaveta,
com o nome aberto na lousa
quase sempre em letras pretas.
Raras as letras douradas,
raras também as gorjetas.
— Gorjetas aqui, também,
só dá mesmo a gente rica,
em cujo bairro não se pode
trabalhar em mangas de camisa;
onde se exige quépi
e farda engomada e limpa.
— Mas não foi pelas gorjetas,não,
que vim pedir remoção:
é porque tem menos trabalho
que quero vir para Santo Amaro;
aqui ao menos há mais gente
para atender a freguesia,
para botar a caixa cheia
dentro da caixa vazia.
— E que disse o Administrador,
se é que te deu ouvido?
— Que quando apareça a ocasião
atenderá meu pedido.
— E do senhor Administrador
isso foi tudo que arrancaste?
— No de Casa Amarela me deixou
mas me mudou de arrabalde.
— E onde vais trabalhar agora,
qual o subúrbio que te cabe?
— Passo para o dos industriários,
que é também o dos ferroviários,
de todos os rodoviários
e praças-de-pré dos comerciários.
— Passas para o dos operários,
deixas o dos pobres vários;
melhor: não são tão contagiosos
e são muito menos numerosos.
— É, deixo o subúrbio dos indigentes
onde se enterra toda essa gente
que o rio afoga na preamar
e sufoca na baixa-mar.
— É a gente sem instituto,
gente de braços devolutos;
são os que jamais usam luto
e se enterram sem salvo-conduto.
— É a gente dos enterros gratuitos
e dos defuntos ininterruptos.
— É a gente retirante
que vem do Sertão de longe.
— Desenrolam todo o barbante
e chegam aqui na jante.
— E que então, ao chegar,
não têm mais o que esperar.
— Não podem continuar
pois têm pela frente o mar.

— Não têm onde trabalhar
e muito menos onde morar.
— E da maneira em que está
não vão ter onde se enterrar.
— Eu também, antigamente,
fui do subúrbio dos indigentes,
e uma coisa notei
que jamais entenderei:
essa gente do Sertão
que desce para o litoral, sem razão,
fica vivendo no meio da lama,
comendo os siris que apanha;
pois bem: quando sua morte chega,
temos que enterrá-los em terra seca.
— Na verdade, seria mais rápido
e também muito mais barato
que os sacudissem de qualquer ponte
dentro do rio e da morte.
— O rio daria a mortalha
e até um macio caixão de água;
e também o acompanhamento
que levaria com passo lento
o defunto ao enterro final
a ser feito no mar de sal.
— E não precisava dinheiro,
e não precisava coveiro,
e não precisava oração
e não precisava inscrição.
— Mas o que se vê não é isso:
é sempre nosso serviço
crescendo mais cada dia;
morre gente que nem vivia.
— E esse povo lá de riba de Pernambuco,
da Paraíba,que vem buscar no Recife
poder morrer de velhice,
encontra só, aqui chegando
cemitérios esperando.
— Não é viagem o que fazem,
vindo por essas caatingas, vargens;
aí está o seu erro:
vêm é seguindo seu próprio enterro.

O RETIRANTE APROXIMA-SE
DE UM DOS CAIS DO CAPIBARIBE

— Nunca esperei muita coisa,
é preciso que eu repita.
Sabia que no rosário
de cidade e de vilas,
e mesmo aqui no Recife
ao acabar minha descida,
não seria diferente
a vida de cada dia:
que sempre pás e enxadas
foices de corte e capina,
ferros de cova, estrovengas
o meu braço esperariam.
Mas que se este não mudasse
seu uso de toda vida,esperei,
devo dizer,que ao menos aumentaria
na quartinha, a água pouca,
dentro da cuia, a farinha,
o algodãozinho da camisa,
ao meu aluguel com a vida.
E chegando, aprendo que,
nessa viagem que eu fazia,
sem saber desde o Sertão,
meu próprio enterro eu seguia.
Só que devo ter chegado
adiantado de uns dias;
o enterro espera na porta:
o morto ainda está com vida.
A solução é apressar
a morte a que se decida
e pedir a este rio,
que vem também lá de cima,
que me faça aquele enterro
que o coveiro descrevia:
caixão macio de lama,
mortalha macia e líquida,
coroas de baronesa
junto com flores de aninga,
e aquele acompanhamento
de água que sempre desfila
(que o rio, aqui no Recife,
não seca, vai toda a vida).

APROXIMA-SE DO RETIRANTE
O MORADOR DE UM DOS MOCAMBOS
QUE EXISTEM ENTRE O CAIS E A ÁGUA DO RIO

— Seu José, mestre carpina,
que habita este lamaçal,
sabes me dizer se o rio
a esta altura dá vau?
sabe me dizer se é funda
esta água grossa e carnal?
— Severino, retirante,
jamais o cruzei a nado;
quando a maré está cheia
vejo passar muitos barcos,
barcaças, alvarengas,
muitas de grande calado.
— Seu José, mestre carpina,
para cobrir corpo de homem
não é preciso muito água:
basta que chega ao abdome,
basta que tenha fundura
igual à de sua fome.
— Severino, retirante,
pois não sei o que lhe conte;
sempre que cruzo este rio
costumo tomar a ponte;
quanto ao vazio do estômago,
se cruza quando se come.
— Seu José, mestre carpina,
e quando ponte não há?
quando os vazios da fome
não se tem com que cruzar?
quando esses rios sem água
são grandes braços de mar?
— Severino, retirante,
o meu amigo é bem moço;
sei que a miséria é mar largo,
não é como qualquer poço:
mas sei que para cruzá-la
vale bem qualquer esforço.
— Seu José, mestre carpina,
e quando é fundo o perau?
quando a força que morreu
nem tem onde se enterrar,
por que ao puxão das águas
não é melhor se entregar?
— Severino, retirante,
o mar de nossa conversa
precisa ser combatido,
sempre, de qualquer maneira,
porque senão ele alaga
e devasta a terra inteira.
— Seu José, mestre carpina,
e em que nos faz diferença
que como frieira se alastre,
ou como rio na cheia,
se acabamos naufragados
num braço do mar miséria?
— Severino, retirante,
muita diferença faz
entre lutar com as mãos
e abandoná-las para trás,
porque ao menos esse mar
não pode adiantar-se mais.
— Seu José, mestre carpina,
e que diferença faz
que esse oceano vazio
cresça ou não seus cabedais,
se nenhuma ponte mesmo
é de vencê-lo capaz?
— Seu José, mestre carpina,
que lhe pergunte permita:
há muito no lamaçal
apodrece a sua vida?
e a vida que tem vivido
foi sempre comprada à vista?
— Severino, retirante,
sou de Nazaré da Mata,
mas tanto lá como aqui
jamais me fiaram nada:
a vida de cada dia
cada dia hei de comprá-la.
— Seu José, mestre carpina,
e que interesse, me diga,
há nessa vida a retalho
que é cada dia adquirida?
espera poder um dia
comprá-la em grandes partidas?
— Severino, retirante,
não sei bem o que lhe diga:
não é que espere comprar
em grosso tais partidas,
mas o que compro a retalho
é, de qualquer forma, vida.
— Seu José, mestre carpina,
que diferença faria
se em vez de continuar
tomasse a melhor saída:
a de saltar, numa noite,
fora da ponte e da vida?

UMA MULHER,
DA PORTA DE ONDE SAIU O HOMEM,
ANUNCIA-LHE O QUE SE VERÁ

— Compadre José, compadre,
que na relva estais deitado:
conversais e não sabeis
que vosso filho é chegado?
Estais aí conversando
em vossa prosa entretida:
não sabeis que vosso filho
saltou para dentro da vida?
Saltou para dento da vida
ao dar o primeiro grito;
e estais aí conversando;
pois sabei que ele é nascido.

APARECEM E SE APROXIMAM
DA CASA DO HOMEM VIZINHOS,
AMIGOS, DUAS CIGANAS ETC.

— Todo o céu e a terra
lhe cantam louvor.
Foi por ele que a maré
esta noite não baixou.
— Foi por ele que a maré
fez parar o seu motor:
a lama ficou coberta
e o mau-cheiro não voou.
— E a alfazema do sargaço,
ácida, desinfetante,
veio varrer nossas ruas
enviada do mar distante.
— E a língua seca de esponja
que tem o vento terral
veio enxugar a umidade
do encharcado lamaçal.
— Todo o céu e a terra
lhe cantam louvor
e cada casa se torna
num mocambo sedutor.
— Cada casebre se torna
no mocambo modelar
que tanto celebram os
sociólogos do lugar.
— E a banda de maruins
que toda noite se ouvia
por causa dele, esta noite,
creio que não irradia.
— E este rio de água cega,
ou baça, de comer terra,
que jamais espelha o céu,
hoje enfeitou-se de estrelas.

COMEÇAM A CHEGAR PESSOAS
TRAZENDO PRESENTES PARA O RECÉM-NASCIDO

— Minha pobreza tal é
que não trago presente grande:
trago para a mãe caranguejos
pescados por esses mangues;
mamando leite de lama
conservará nosso sangue.
— Minha pobreza tal é
que coisa não posso ofertar:
somente o leite que tenho
para meu filho amamentar;
aqui são todos irmãos,
de leite, de lama, de ar.
— Minha pobreza tal é
que não tenho presente melhor:
trago papel de jornal
para lhe servir de cobertor;
cobrindo-se assim de letras
vai um dia ser doutor.
— Minha pobreza tal é
que não tenho presente caro:
como não posso trazer
um olho d'água de Lagoa do Carro,
trago aqui água de Olinda,
água da bica do Rosário.
— Minha pobreza tal é
que grande coisa não trago:
trago este canário da terra
que canta corrido e de estalo.
— Minha pobreza tal é
que minha oferta não é rica:
trago daquela bolacha d'água
que só em Paudalho se fabrica.
— Minha pobreza tal é
que melhor presente não tem:
dou este boneco de barro
de Severino de Tracunhaém.
— Minha pobreza tal é
que pouco tenho o que dar:
dou da pitu que o pintor Monteiro
fabricava em Gravatá.
— Trago abacaxi de Goiana
e de todo o Estado rolete de cana.
— Eis ostras chegadas agora,
apanhadas no cais da Aurora.
— Eis tamarindos da Jaqueira
e jaca da Tamarineira.
— Mangabas do Cajueiro
e cajus da Mangabeira.
— Peixe pescado no Passarinho,
carne de boi dos Peixinhos.
— Siris apanhados no lamaçal
que há no avesso da rua Imperial.
— Mangas compradas nos quintais ricos
do Espinheiro e dos Aflitos.
— Goiamuns dados pela gente pobre
da Avenida Sul e da Avenida Norte.

FALAM AS DUAS CIGANAS
QUE HAVIAM APARECIDO COM OS VIZINHOS

— Atenção peço, senhores,
para esta breve leitura:
somos ciganas do Egito,
lemos a sorte futura.
Vou dizer todas as coisas
que desde já posso ver
na vida desse menino
acabado de nascer:
aprenderá a engatinhar
por aí, com aratus,
aprenderá a caminhar
na lama, como goiamuns,
e a correr o ensinarão
o anfíbios caranguejos,
pelo que será anfíbio
como a gente daqui mesmo.
Cedo aprenderá a caçar:
primeiro, com as galinhas,
que é catando pelo chão
tudo o que cheira a comida;
depois, aprenderá com
outras espécies de bichos:
com os porcos nos monturos,
com os cachorros no lixo.
Vejo-o, uns anos mais tarde,
na ilha do Maruim,
vestido negro de lama,
voltar de pescar siris;
e vejo-o, ainda maior,
pelo imenso lamarão
fazendo dos dedos iscas
para pescar camarão.

— Atenção peço, senhores,
também para minha leitura:
também venho dos Egitos,
vou completar a figura.
Outras coisas que estou vendo
é necessário que eu diga:
não ficará a pescar
de jereré toda a vida.
Minha amiga se esqueceu
de dizer todas as linhas;
não pensem que a vida dele
há de ser sempre daninha.
Enxergo daqui a planura
que é a vida do homem de ofício,
bem mais sadia que os mangues,
tenha embora precipícios.
Não o vejo dentro dos mangues,
vejo-o dentro de uma fábrica:
se está negro não é lama,
é graxa de sua máquina,
coisa mais limpa que a lama
do pescador de maré
que vemos aqui, vestido
de lama da cara ao pé.
E mais: para que não pensem
que em sua vida tudo é triste,
vejo coisa que o trabalho
talvez até lhe conquiste:
que é mudar-se destes mangues
daqui do Capibaribe
para um mocambo melhor
nos mangues do Beberibe.

FALAM OS VIZINHOS, AMIGOS,
PESSOAS QUE VIERAM COM PRESENTES ETC.

— De sua formosura
já venho dizer:
é um menino magro,
de muito peso não é,
mas tem o peso de homem,
de obra de ventre de mulher.
— De sua formosura
deixai-me que diga:
é uma criança pálida,
é uma criança franzina,
mas tem a marca de homem,
marca de humana oficina.
— Sua formosura
deixai-me que cante:
é um menino guenzo
como todos os desses mangues,
mas a máquina de homem
já bate nele, incessante.
— Sua formosura
eis aqui descrita:
é uma criança pequena,
enclenque e setemesinha,
mas as mãos que criam coisas
nas suas já se adivinha.
— De sua formosura
deixai-me que diga:
é belo como o coqueiro
que vence a areia marinha.
— De sua formosura
deixai-me que diga:
belo como o avelós
contra o Agreste de cinza.
— De sua formosura
deixai-me que diga:
belo como a palmatória
na caatinga sem saliva.
— De sua formosura
deixai-me que diga:
é tão belo como um sim
numa sala negativa.
— É tão belo como a soca
que o canavial multiplica.
— Belo porque é uma porta
abrindo-se em mais saídas.
— Belo como a última onda
que o fim do mar sempre adia.
— É tão belo como as ondas
em sua adição infinita.
— Belo porque tem do novo
a surpresa e a alegria.
— Belo como a coisa nova
na prateleira até então vazia.
— Como qualquer coisa nova
inaugurando o seu dia.
— Ou como o caderno novo
quando a gente o principia.
— E belo porque com o novo
todo o velho contagia.
— Belo porque corrompe
com sangue novo a anemia.
— Infecciona a miséria
com vida nova e sadia.
— Com oásis, o deserto,
com ventos, a calmaria.

O CARPINA FALA COM O RETIRANTE
QUE ESTEVE DE FORA, SEM TOMAR PARTE EM NADA

— Severino retirante,
deixe agora que lhe diga:
eu não sei bem a resposta
da pergunta que fazia,
se não vale mais saltar
fora da ponte e da vida;
nem conheço essa resposta,
se quer mesmo que lhe diga;
é difícil defender,
só com palavras, a vida,
ainda mais quando ela é
esta que vê, severina;
mas se responder não pude
à pergunta que fazia,
ela, a vida, a respondeu
com sua presença viva.
E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
mesmo quando é uma explosão
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosãode uma vida severina.

Este é o mais conhecido dos trabalhos do poeta pernambucano.Os versos foram extraídos do livro "João Cabral de Melo Neto - Obra Completa", Editora Nova Aguilar S.A. - Rio de Janeiro, 1994, pág. 171